Nothing to See Here (Kevin Wilson)

Logo após completar os 28 anos, trabalhando de caixa em dois mercadinhos e ainda morando com a mãe, Lillian Breaker recebe uma proposta irrecusável de uma amiga dos tempos de escola, Madison Roberts: ajudar a cuidar de seus dois enteados (Bessie e Roland) durante o verão. Partindo desse ponto não parece que o que virá a seguir será uma história cheia de momentos que beiram ao absurdo, outros hilários, e alguns assustadores. Mas Nothing to See Here de Kevin Wilson contraria o próprio título: há muito para se ver ali.

O interessante é que tudo vai sendo revelado aos poucos, através das palavras da narradora-protagonista Lillian. Como uma pessoa que já tomou algumas bordoadas na vida, confiança não é exatamente uma característica que ela possui, então é evidente que não entregará o jogo rapidamente. São algumas páginas para revelar que talvez Madison nem seja mais sua amiga (o que tornaria o pedido estranho). Segue um pouco mais para contar a razão para a dúvida sobre a amizade. E lá vão umas trinta páginas quando ficamos sabendo as reais condições da proposta de Madison: seus enteados simplesmente pegam fogo quando estão nervosos. O pai das crianças está em um momento crucial da carreira e precisa ficar longe de qualquer tipo de escândalo, por isso Lillian deve garantir que as crianças não causem problemas durante o verão.

Sim, “pegam fogo”. Não se machucam, não queimam como as vítimas das histórias sobre combustão espontânea, mas o corpo fica em chamas quando eles estão estressados. E considerando que a mãe dos meninos acabara de morrer, dá para imaginar que eles estão terrivelmente estressados quando finalmente conhecem Lillian. E eu sei que tudo leva a acreditar que as personagens mais interessantes serão as crianças, mas o livro do começo ao fim é todo a Lillian. Que personagem bizarra, mas ao mesmo tempo cativante.

Ela é uma narradora extremamente amarga, na mesma quantidade em que é realista (o que chega a ser irônico considerando a situação em que se encontra). No momento em que conta a história sobre a amizade com Madison, é nítido que ama muito a amiga, mas a culpa demais por ter perdido a única chance num mundo que fala em meritocracia ignorando a existência dos privilégios: “Eu não estava destinada à grandeza; Eu sabia disso. Mas eu estava buscando uma forma de roubá-la de quem fosse estúpido o bastante para soltar as mãos dela“.

Há algo no modo auto-depreciativo da sua fala que beira ao cômico em muitos momentos, e dá até para se identificar um tanto com o que é narrado, como quando diz ao conhecer a cozinheira da casa: “Eu não saberia dizer se Mary estava concordando comigo ou tirando sarro da minha cara. Se eu não tinha certeza, eu normalmente assumia que a pessoa estava tirando sarro da minha cara“.

E é por parecer o completo oposto do que se esperaria de uma pessoa escolhida para cuidar de crianças (uma Mary Poppins sem acessórios, como ela diz) que obviamente o que se imagina é que a relação com os enteados de Madison será insuportável, um favor pela amizade (e pelo dinheiro). Mas logo de cara Lillian percebe que ela e as crianças têm muito em comum, e aceita a tarefa. É divertidíssimo observar os paralelos entre a situação inusitada da narradora com a de qualquer pessoa que tenha que cuidar de meninos, de como saímos de um momento “Ok, eu mando muito bem nisso” para um total “Caramba, eu vou estragar a vida deles” em segundos.

O legal é que o Nothing to See Here varia o tom tantas vezes que quase nunca sabemos o que esperar. Vai do terror ao ler Bessie e Roland dizendo que vão colocar fogo em tudo quando acham que Lillian está dormindo ao cômico da relação dela com Carl, uma espécie de faz-tudo do pai das crianças. A tristeza ao conhecer a história da mãe dos meninos. São páginas e páginas onde o mais importante são as relações, e o fato de as crianças pegarem fogo funciona apenas como (ok, me perdoe por essa) combustível.

Porque é óbvio que o fato de pessoas pegarem fogo em uma história chama a atenção e aguça a curiosidade do leitor, mas é bacana perceber que embora passe por um momento hilário em um médico/investigador do paranormal tentando investigar o que causa o fenômeno, nenhuma resposta é de fato dada, e é simplesmente irrelevante – não fica aquela sensação de logro. A Taffy Brodesser-Akner fala algo na (ótima) resenha dela para o New York Times que é real: você não chega nem a pensar em metáfora para o que o fogo pode ser, porque bem, não é importante. São as relações entre as pessoas que realmente importam.

Falando em relações, a de Lillian com Madison vale um comentário: como com toda a auto-depreciação já mencionada ainda assim Lillian não é em nenhum momento detestável, mas Madison por outro lado é. São passagens e mais passagens em que é nítido que Lillian ama a amiga (e não só como amiga), mas não deixa de observar as imperfeições escondidas sob a máscara que a amiga parece ter tanto trabalho para manter. Tem uma passagem em especial que achei brilhante no retrato da relação das duas. Depois de dias na casa adaptada para as crianças, Lillian recebe um convite de Madison (através de Carl) para conversarem na mansão. Já começa que Madison não chega a recebê-la dentro de casa, ficam sentadas na varanda conversando. Chegam então ao seguinte diálogo:

“Okay, ” ela finalmente respondeu. “Descubra do que eles gostam, e eu vou comprar um monte disso e darei para eles.”

“Suborno?” eu disse, sorrindo.

“Qual é o ponto de ter dinheiro se você não pode usá-lo para fazer as pessoas gostarem de você?”, ela disse. Ela alcançou o balde e pegou outra cerveja, abriu a tampa e a entregou para mim.

Ao mesmo tempo que fala em usar dinheiro para fazer as pessoas gostarem dela, Madison está ali usando o dinheiro para fazer com que Lillian goste dela, ou no mínimo, permaneça em sua órbita a adorando. O toque da cerveja (Lillian toma a primeira vorazmente porque não sabe quanto tempo teria com a amiga ali) parece coroar o cinismo. Não obstante, as duas têm uma relação que vai além desse ser detestável ou não. É sobre o que desejam para si, sobre o que têm em mãos para conquistar isso. Sobre quererem vencer – e o jogo de basquete que vale um olho roxo para Lillian representa bem tudo isso.

E o livro segue assim, sempre surpreendendo positivamente, até que chega o momento do desfecho, que infelizmente me decepcionou um pouco (e transformou o que seria um livro cinco estrelas em um livro quatro estrelas lá no Goodreads, hehe). A sensação que tive é que o autor não sabia muito bem mais para onde ir e criou o que ali seria um não-problema. De qualquer forma é bem tocante, e retoma aquele ponto sobre cuidar de uma criança: mesmo que você queira aquilo, a responsabilidade é enorme e pode ser assustadora. E que seja lá o que era sua vida antes da chegada dessa criança, nunca mais será a mesma.

Não saiu no Brasil ainda e não sei se tem previsão de sair, mas fez sucesso entre os críticos lá nos EUA, de repente acaba ganhando uma tradução por aqui. A Companhia das Letras publicou em 2014 um outro livro do autor chamado Caninos em Família, que pelo que eu vi na sinopse, também fala um pouco sobre relações de pais e filhos.

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