Enterre seus mortos (Ana Paula Maia)

Enterre seus mortos, romance de Ana Paula Maia publicado em 2018 pela Companhia das Letras tem já em seu primeiro parágrafo uma série de elementos que (nas palavras do narrador) enfurecem os sentidos. Um triturador imenso está moendo os restos de uma vaca. O diálogo que segue a descrição da máquina em funcionamento é surpreendentemente banal: o animal é grande demais, algum osso está emperrando a máquina.

Esse tratamento prosaico dispensado à morte (aos restos, ao que vemos com tanto nojo) será uma constante ao longo do romance. O protagonista Edgar Wilson1 é um sujeito de poucas palavras que trabalha retirando animais mortos da estrada que passa perto de uma mina de calcário. No seu cotidiano, a morte é banal, é algo que simplesmente acontece: “Observava diariamente a vida evoluir para a morte“.

O que se tem na primeira parte do romance é uma porção dessa rotina. Vemos Edgar atendendo ocorrências, e nelas o modo como parece pontuar que a repetição tornou tudo banal. Um cavalo atropelado, um carro que explode, centenas de ovelhas e um pastor mortos por raios. Não importa o que acontece, nada parece causar assombro em Edgar, que segue bebendo seu café, escapando das chuvas de pedras das explosões na mina de calcário e levando os corpos dos animais para triturar. Nem mesmo a morte de pessoas, nos inúmeros acidentes que acaba vendo nas estradas parecem perturbá-lo: faz o que acha que deve ser feito, apenas isso. “É um homem simples que executa tarefas“, descreve o narrador.

Nesse primeiro momento o destaque fica para ambientação. Já comentei em outros momentos por aqui, mas acho uma tarefa extremamente difícil – como desenvolvê-la sem ser entediante, descrevendo cada plantinha do local. Ana Paula Maia segue a via de evocar o familiar, fazendo com que o leitor use suas próprias referências para complementar as descrições. A estrada pela fauna pode ser de uma determinada região, mas não fossem os bichos, poderia ser qualquer estrada do país. Plantações, as pequenas mercearias, os bares de beira de estrada. 

A partir desse familiar, sobra mais espaço para trabalhar com o estranho. A começar pela atmosfera, que desde o início parece extremamente opressora. Um silêncio sobrenatural, a ausência de tudo, uma tensão em plena luz do dia. Aquela sensação constante de que há algo de errado ali, independente da calma da rotina de Edgar Wilson, algo que seguirá durante toda a leitura, até a conclusão.

É até curioso, porque nada de realmente assustador acontece, não no sentido que se esperaria (alguma entidade sobrenatural? um assassino na beira da estrada?). Há sim, a perturbação dos sentidos através de imagens que nos causam repulsa (corpos apodrecendo, empilhados, violados) e também o horror dos vários momentos de falta de humanidade das pessoas que cruzam o caminho de Edgar Wilson. Mas mesmo sem o óbvio do que se consideraria terror, a narrativa sustenta a tensão do começo ao fim.

Existe uma ausência urgente pairando em cada centímetro do vilarejo. Não há nada vivo em parte alguma.

A rotina de Edgar Wilson é interrompida quando ele encontra o corpo de uma mulher na mata. Decidido a dar um fim digno à mulher, acaba a levando para o depósito. Pouco depois, outro corpo aparece, agora de um homem. A partir daí, uma série de dificuldades acabará colocando Edgar Wilson e o colega Tomás na estrada com os dois corpos no porta-malas. Como já dito antes, é assustador o modo como os defuntos são tratados: sem ninguém que os reclame, seus corpos apodrecendo. No período em que ficam sob responsabilidade de Edgar Wilson, chegam a sugerir triturá-los com os outros animais e há quem queira comprá-los para vender seus pedaços (como se fossem carros em um ferro-velho).

É aí que fica evidente que o protagonista não é totalmente indiferente à morte. Embora a compreenda como inevitável, tem medo justamente do que pode acontecer com seu corpo quando morrer: “Só uma coisa realmente o apavora: morrer sozinho e ser deixado para trás. (…) O medo de Edgar vai além: é esse medo de ser devorado por abutres, comido ao ar livre por vermes necrófagos, de ter sua carne exposta ao vexame.“. É algo que nos ajuda a entender a motivação da personagem que, mesmo com tantas dificuldades, se recusa a simplesmente abandonar os corpos pelos quais se sente responsável.

Há ainda na recusa de Edgar Wilson um ponto importante: a distinção entre homem e animal. Se abandonados para serem devorados por abutres, eles não serão diferentes de qualquer outro bicho. Edgar Wilson não consegue tratá-los dessa maneira, e por isso apesar dos imprevistos, não desiste. “A questão é que somos pagos pra recolher os animais mortos e dar um fim neles. Pessoas não são animais.“. Nessa dicotomia homem/animal, uma passagem que acho que se destaca é a do segundo necrotério. O responsável tenta comprar os corpos porque quer vender as partes (fala principalmente dos cabelos da mulher). Ainda ali, alguns funcionários comentam sobre o tanto de itens roubados de corpos encontrados nas estradas. Edgar Wilson pensa estar salvando os defuntos dos abutres, mas sem saber acaba levando-os a outro tipo de necrófagos.

É um livro bastante perturbador, até por momentos como esse. Mesmo que salpicado de momentos engraçados (aquele “é meio filho de Deus, meio filho da puta, assim como a maioria de nós” lá do começo me conquistou), o tom que predomina é o de tensão. E tem algo em determinadas personagens, aquele viver apesar das condições absurdas (a Nete e as alergias causadas pelas explosões, por exemplo) que prendem a atenção quase como um feitiço. Quando você vê, acabou o livro, e fica aquela vontade de mais. Mesmo que desde o começo ele não tenha poupado o leitor de enfurecer seus sentidos.


  1. não sei se porque o livro me foi recomendado como terror, mas o nome na minha cabeça soava quase como um cacófato de ideias: Edgar (o Poe) e Wilson do conto William Wilson do Poe. 

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