Little Eyes (Samanta Schweblin)

Vou começar dizendo que tinha um post entre o último que publiquei e esse que escrevo agora. Era uma espécie de relato do isolamento que não consegui concluir, mas achei que ficaria esquisito chegar aqui e falar do livro novo da Schweblin que acabei de ler, como se hum, o mundo não estivesse de pernas para o ar (e aqui no Brasil o problema não é só sanitário). Então só para deixar registrado: o mundo está de pernas para o ar, mas a gente toca o barco como pode – no meu caso, ainda bem que ainda tenho meus livros para me distrair.

Sobre o livro: Little Eyes (Kentukis no original) da argentina Samanta Schweblin saiu em outubro de 2018 e recentemente ganhou uma tradução para o inglês – há uma tradução portuguesa, mas no Brasil pelo que eu vi ainda não tem nada. Os anglófonos estão bem encantados, tanto é que o livro está na longlist para o International Booker Prize de 2020, então o negócio é torcer para que isso sirva como incentivo para alguma editora daqui.

(EDITADO 06/08/2021: A Fósforo lançou o livro aqui no Brasil há pouco, o título é o mesmo do original, Kentukis. A tradução é de Livia Deorsola. Clique aqui para saber mais.)

A história descreve a vida das pessoas do mundo todo durante a mania dos kentukis – bichinhos de pelúcia controlados remotamente por uma pessoa desconhecida. Desde o início fica a impressão de que é  algo que poderia acontecer conosco agora mesmo – isso se não extrapolarmos e pensarmos que já acontece, de certa maneira, com nossos celulares ou assistentes tipo a Alexa. Mas o mais bacana é que a autora vai além da discussão sobre como abrimos mão de nossa privacidade, explorando também o horror do que somos quando ninguém está olhando – ou quando achamos que ninguém está olhando.

Cada capítulo se concentra em um “keeper” (dono de kentuki) ou um “dweller” (pessoa que controla o kentuki). Aos poucos vamos entendendo como funciona o brinquedo, as regras de uso e especifidades – o dweller, por exemplo, paga para estabelecer conexão que ocorre de forma aleatória com um kentuki. Ou seja, o comprador do bichinho (o keeper) nunca poderá escolher quem o controlará. Se a conexão for interrompida pelo dweller, o kentuki “morre” – a conexão não pode ser restabelecida, nem com outro dweller. E, talvez o mais importante: o dweller consegue ouvir o keeper, mas o contrário não acontece. Qualquer comunicação que se estabelece entre os dois depende de outros meios. No capítulo inicial, por exemplo, um trio de adolescentes usa uma tábua Ouija para se comunicar com o dweller.

Aqui já vale destacar como Schweblin desenvolve bem toda a realidade criada ao redor dessa gadget. Não só por mostrar o conjunto de regras para o funcionamento, mas de refletir em como as pessoas usariam o produto se ele de fato existisse – em determinado momento, há até um motorista de taxi que usa o kentuki como uma espécie de Waze, por exemplo. É interessante porque não é como romances que tentam criticar as redes sociais criando uma cópia das tais redes com nome diferente. É algo novo, com um funcionamento próprio, e a autora explora as possibilidades de uma forma bastante criativa.

Mas obviamente o que ganha mais destaque é a galeria de personagens (e, consequentemente, de histórias) que interagem com os bichinhos. Como dito anteriormente, os kentukis são um fenômeno mundial, e no livro os capítulos mostram personagens de vários países e diferentes realidades. Um gurizinho na Antígua, a namorada de um artista em Oaxaca, uma mãe solitária em Lima, etc. São vários perfis, saltamos de keepers para dwellers, cada qual com seu motivo para aquela relação.

Her son would rather be a keeper than a dweller? That is, he would rather have than be? And just what did that tell her about her own son?

Os capítulos sempre causam algum tipo de perturbação, um incômodo – talvez aí o que mais aproxime o livro de outros trabalhos da autora, como Distância de Resgate. É, como já mencionado, uma mistura dos medos de expor demais a intimidade e do que as pessoas são capazes de fazer quando não tem ninguém olhando. 

She breathed atop the circles, above hundreds of verbs, orders, and desires, and the people and the kentukis surrounded her and started to recognize her. She was so rigid she felt her body creak, and for the first time she wondered, with a fear that threatened to break her, whether she was standing on a world that it was ever possible to escape.

Muito do que prende nossa atenção é que em alguns casos a narrativa tratando de uma personagem é interrompida para só voltar depois de um ciclo com as demais histórias – fica aquela dúvida sobre o que acontecerá, no melhor estilo gancho de série de tv. Algumas se encerram em um capítulo único, quase como se fossem um mini-conto dentro do romance. O interessante é que mesmo com a multidão de vozes (ou ainda, de olhares), há uma coesão que não se sustenta apenas no kentuki. 

Há ainda uma solidão que parece sempre pairar nas vidas das personagens – a mãe que vive em Lima, por exemplo, ganhou do filho que foi morar em Hong Kong um passe para ser dweller. Vive só, e passar a “cuidar” de uma desconhecida que vive na Alemanha vira algo importante em seu cotidiano. A garota que comprou um kentuki em Oaxaca está na cidade porque está acompanhando o namorado – não conhece ninguém, não tem um projeto ou mesmo independência financeira. O pai que mora na Itália se divorciou, tem a guarda do filho mas parece não conseguir estabelecer qualquer diálogo com a criança. E por aí vai. Tanto os keepers quanto os dwellers são marcados de algum modo pela solidão, o kentuki parece oferecer algum tipo de conexão com outra pessoa, mas fica sempre a dúvida de quão real é (ou ainda, suficiente).

Eu gosto da tradução do título para o inglês, “olhos pequenos”, “olhinhos”, porque a marca principal da narrativa é isso – o que o dweller pode ver. Vi um comentário (e eu não vou lembrar onde, então fico devendo o link) estabelecendo uma relação entre os olhinhos dos kentukis e os nossos olhos ao ler um romance, de como espiamos a vida do outro e os julgamos – mas acho que os “olhinhos” cabem para tantas outras coisas que a relação do leitor com a literatura não me parece a definitiva, mais uma de várias.

E para terminar, eu só queria deixar registrado que foi o primeiro livro que li durante o isolamento que me fez esquecer do isolamento. É complicado explicar porque o modo como lemos é extremamente pessoal, mas tentei de tudo e mesmo nas comédias românticas que uso como meu remedinho para quando as coisas estão ruins, ficava pensando: “Menina, sai desse bar que tá lotado!” ou ainda “Ai, que saudades poder abraçar as pessoas ao encontrá-las na rua!”. Acho que é algo que vale o registro, inclusive porque pode servir como sugestão para quem também está com dificuldade nas leituras durante o isolamento.

Aproveitando essa conversa de dificuldade de leitora durante isolamento para sugerir também um texto lindo do Julián Fuks, O que a quarentena dos rouba?. Acho que no fim das coisas é o tipo de coisa que eu queria ter publicado entre o último post e o de agora. Benzadeus temos nossos escritores para nos ajudar quando nos faltam palavras.

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