A arte perdida de fazer agenda

Ganhei minha primeira agenda em 1993, era uma de capa dura com uma ilustração fofa do Garfield que logo transformei em diário (talvez o que eu mais evite reler, porque quem é que não tem vergonha da sua própria versão aos 12 anos?). Mas a primeira vez que fiz agenda foi no ano seguinte, depois de ganhar uma do Fido Dido de amigo secreto na escola. Era ainda uma mescla, eu escrevia diário, mas começava ali um hábito que seguiu comigo por muitos anos.

Mesmo na época eu já via o ato de “fazer agenda” como uma espécie de registro do tempo que estava vivendo, para além das coisas que contava no diário – letras de música que ouvia, recortes de gibis que eu lia, propagandas legais de revistas, fotos de ídolos, bilhetes de amigos, convites para festas e, depois de uma certa idade, rótulos de bebidas, propagandas de shows e eventos, camisetinhas feitas com caixa de Marlboro. Reabri-las hoje em dia é como abrir uma cápsula do tempo, muita coisa do que tinha lá não existe mais (cinema por R$2,50, por exemplo). É um pouco codificada, um punhado de coisa sem o menor sentido para quem não viveu o momento, como por exemplo:

E se faço esse comentário aqui é porque lembrei recentemente que há 20 anos, quando comecei a escrever em blog, expliquei para uma amiga que era “mais ou menos como fazer agenda”. Revisitando posts antigos aqui do Hellfire me dei conta de que inicialmente era uma definição bastante exata: alguns registros no estilo diário, misturados com descobertas sobre música, filmes e livros, além de piadinhas, resultados de testes e imagens engraçadas que apareciam na internet. A cápsula do tempo digital registrou o começo e fim do Orkut, o início do Youtube e de outros tantos sites que foram parte do cotidiano e então sumiram do mapa (ou de alguns que continuam ativos por pura teimosia, vide a Valinor).

Não havia um compromisso com formato e nem um tema fixo – a ideia de blogs temáticos já era uma evolução do que foram os primeiros blogs. E essa falta de compromisso permitia a existência de posts como esse, publicado às 3:52 da manhã de um dezembro qualquer:

Depois de uns anos (e conforme meus blogs favoritos foram acabando, e a ideia de uma comunidade que se formava ao redor dos blogs foi acabando também), fui deixando um pouco o lado de querido diário e passando mais para uma espécie de coleção de resenhas de livros e filmes, principalmente. Mas até isso acabou mudando com o tempo.

E não me escapa a ironia de que tanto fazer agenda quanto blogar (no sentido lá da primeira década de 2000) acabaram virando algo que poucas pessoas continuam fazendo, nossas narrativas agora lacradas em outras cápsulas do tempo. Mas o que me preocupa é que a gente tenha aceitado tão facilmente guardar nossas memórias em cápsulas que no fim das contas são gerenciadas por terceiros. Se ainda posso cavar minhas agendas ou resgatar posts antigos do blog é porque nos dois casos o controle é todo meu. Agora com essa morte anunciada do Twitter, será que o backup dos nossos tweets são o suficiente?

Enfim, não quero fazer desse post mais um sobre a necessidade de rompermos com redes sociais controladas por poucas empresas porque eu sei que assim que terminar de escrever vou deixar o link lá no Twitter e no Bluesky.

O que eu quero é compartilhar a experiência com quem esteve lá, reconhecendo que é de fato um ciclo encerrado. Eu não consigo me imaginar fazendo o que fazia há 20 anos, e não tenho mais energia para fazer o que fazia há 10. Por isso, o post é um pouco um cadeado para a experiência do que foi, ao mesmo tempo que corta uma fita e inaugura algo que pode será.

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Quero encerrar com a sugestão do link do blog Blogueiros Raiz, que tem feito o trabalho de reunir o pessoal que ainda atualiza. Quem é da época sabe que a gente dependia demais dos referrals para ser lido, chegar em outras pessoas além das que já nos conheciam. Por um bom tempo aparecer em buscas do Google ajudava, mas convenhamos, Google está falecido junto com o Twitter. Se a ideia é recriar uma comunidade de pessoas que escrevem, falar do trabalho do amiguinho para além do próprio trabalho é uma peça-chave para o início da independência das redes sociais para divulgação.

6 comentários em “A arte perdida de fazer agenda”

    1. então, estou pensando em mudar o formato do bró (eu não tenho coragem de acabar e honestamente não vejo plataforma melhor para publicar o que escrevo, pensei até em ir para substack, mas aí sempre retorno à ideia de que no substack o controle não é meu e no dia que deixar de existir o que escrevi lá vira um arquivo de backup), a ideia seria aproveitar a virada do ano para começar, veremos _o/

  1. Engraçado que hoje eu tava folheando minha agenda desse ano, e ela definitivamente é bem menos elaborada que a sua, mas pensando nessa coisa de anotar o que a gente tem feito com os dias mesmo de uma forma quase que banal de afazeres e depois notar como são essas coisas que vão estruturando quem nos tornamos ao longo da vida. Muito bom ter pessoas que ainda escrevem blogs, e tão bem escritos.

    1. eu adoro esses registros do cotidiano que vamos fazendo sem nem perceber. há uns tempos achei dentro de um livro uma nota fiscal de compra de mercado, e nem precisava ver a data da compra, só pelos itens eu sabia que era de um momento de quando eu ainda não tinha filhos. deu para imaginar certinho o que tinha acontecido naquele dia (6 heinekens, 2 donuts de chocolate, 1 shampoo hahahaah)

  2. Eu leio seu blog há anos, peguei muita recomendação de livro sua, tenho saudade da época dos blogs na internet, principalmente de literatura e música (até hoje sinto falta de ter meus mp3’s ilegais no pc e não precisar depender de um stream qualquer). Adoro o jeito que você escreve, espero que continue ainda durante um bom tempo!

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