O Oceano no Fim do Caminho (Neil Gaiman)

oceano-no-fim-do-caminhoSei que quando falo disso pareço aquelas pessoas que visitam a praia pela primeira vez depois de anos de vida, mas vá lá, pense comigo em como a Internet mudou as coisas para todos nós. Começo de 2000 eu fiquei sabendo sobre Deuses Americanos de Neil Gaiman e como já era fã do autor por causa de Sandman, obviamente entrei no modo “OHMEUDEUSEUPRECISOLERESTELIVRO”. E aí eu ia todo dia na livraria perto da faculdade e perguntava “Já chegou Deuses Americanos?” e necas. E foram dias e dias assim, até que finalmente tive o livro em mãos. Agora no caso do lançamento mais recente de Gaiman, O Oceano no Fim do Caminho, não só acompanhei pelo twitter do escritor todo o processo de publicação da obra, como também tive o prazer de acordar na manhã do dia do lançamento e já ter o livro lá no meu kindle, me esperando. Isso para não dizer que eu tinha a opção de escolher entre o original e o traduzido, já que a Intrínseca lançou a tradução simultaneamente (e então os fãs que não leem em inglês não precisaram esperar meses para poder conferir o trabalho do Gaiman, certo?).

Enfim, sobre o livro. O Oceano no Fim do Caminho foi anunciado como o primeiro romance para adultos desde Os Filhos de Anansi. Gaiman de fato tem se dedicado mais à literatura infantojuvenil, com livros como Odd and the Frost Giants ou ainda, O livro do CemitérioEntão com um intervalo de seis anos, é claro que havia uma certa dose de expectativa. Eu estou frisando esse ponto porque normalmente quando criamos expectativa sobre algo, acaba que elas não são superadas e ficamos com um gosto amargo pelo livro “não ter sido tão bom assim”. Mas o fato é que esse não é o caso. Gostei tanto de O Oceano no Fim do Caminho que, quando vi que a porcentagem de leitura no kindle se aproximava dos 99%, comecei a me despedir das personagens junto com o narrador com lágrimas nos olhos. Sério. LÁGRIMAS. Neil Gaiman, seu puto, devolve meu coração.

O pior é que eu realmente não esperava esse desfecho. Comecei a leitura inicialmente estranhando o tom melancólico e sombrio das primeiras páginas, com o narrador saindo de um funeral para fugir um pouco de todo aquele ritual, e acaba se encontrando em um lugar já esquecido de sua infância, uma fazenda no fim do caminho que começava na frente de sua antiga casa. Ali ele começa a lembrar de um período bastante complicado que vivera, uma fase em que era um menino sem amigos que se escondia em histórias e livros não só para passar o tempo, mas para afastar pensamentos ruins. Quando criança, uma série de eventos acaba levando o garoto a descer o caminho até à fazenda, onde conhece a família Hempstock, mais especificamente Lettie, uma menina de uns onze anos de idade que afirma que o lago em seu terreno é um oceano.

Gostei como a fantasia vai tomando conta da narrativa sutilmente, como se você tivesse derrubado um copo de suco de morango em uma toalha branca e aos poucos aquela toalha fosse absorvendo a cor do suco. O leitor vai percebendo aos poucos que a fazenda das Hempstock tem algo de mágico, assim como as próprias mulheres da família. Mas confesso, até esse primeiro momento não há nada de realmente extraordinário no livro, e eu achei que continuaria por aí (até esse momento, o destaque para mim era o modo como o adulto refletia sobre o que significava ser criança). Mas assim, para entender porque eu realmente não estava muito empolgada com o começo, acho que vale dizer que tem até um diálogo que eu juro que lembra Crepúsculo (“How old are you?“, etc.).

Mas então a história engrena e de repente você se encontra em um lugar de céu laranja, familiar e ao mesmo tempo completamente diferente do que você já viu. Tudo se torna possível. A partir daí, o negócio é segurar o fôlego e mergulhar com o narrador, porque a estrutura do livro segue muito aquela fórmula já conhecida do Gaiman de apresentar a história em episódios, digamos assim. Cada capítulo é uma mini-aventura, que leva para outra e para outra e para outra… até o desfecho. Então basicamente não tem como parar, você quer saber como a história acabará, o que acontecerá com o narrador, Lettie e as demais personagens.

E aqui vou comentar alguns detalhes do enredo em relação à história de Sandman, então se você é mais cheio de fricotes com spoilers é melhor pular lá para o último parágrafo. Começando pelo tom geral da história: eu fiquei bastante surpresa porque Os filhos de Anansi e mesmo os outros livros de Gaiman sempre tiveram uma certa dose de humor que deixava a narrativa mais leve, com exceção talvez para Deuses Americanos. O Oceano no fim do Caminho vem agora fazer par com Deuses Americanos, já que a história tem momentos que tendem para o mais puro horror (oi, tirar um verme do pé?).

Há qualquer coisa ali que fez com que eu lembrasse de um dos meus capítulos favoritos no arco Estação das Brumas em Sandman, o quarto para ser mais precisa (No qual os mortos retornam e Charles Rowland conclui sua educação). Só para situar quem não lembra, é aquele que mostra as consequências de Lúcifer ter fechado as portas do Inferno, com os mortos agora caminhando entre os vivos. Charles é um garotinho que faz amizade com um menino que morreu após ser atacado pelos bullies do colégio interno onde estudavam. É, talvez, uma das histórias mais assustadoras em Sandman, e parte desse horror se constrói justamente na relação entre o universo das crianças e dos adultos. Mais ainda, de uma criança que se vê em situação na qual não pode confiar nos adultos. Há capítulos em O Oceano no Fim do Caminho que são de cortar o coração, porque vemos o narrador em perigo por causa da governanta/babá Ursula, mas que não pode contar com os pais porque a mãe está trabalhando fora e o pai está “enfeitiçado” por Ursula (ah, sim, thumbs up aqui para o Gaiman para o modo como ele lida com o adultério nos olhos de uma criança). É assustador, porque o narrador está só – não tem como fugir e não consegue chegar até a amiga que poderia ajudá-lo.

A amiga, é claro, seria Lettie Hempstock. Você não precisa ter muito conhecimento de mitologia para ver que as Hempstock representam uma deusa tríplice, aqui na história acho que o mais preciso seria dizer que são as Moiras dos gregos, deusas do destino responsáveis por fiar, rolar e cortar o fio da vida dos homens. A donzela, a mãe e a anciã: uma trindade que se repete em outros mitos, como o das Fúrias, e a Hécate dos gregos ou mesmo a Morrigan dos celtas. E repete também uma figura conhecida em Sandman, que aparece já no primeiro arco, Prelúdios e Noturnos (repare na ilustração abaixo como Gaiman já brinca com a ideia de as três serem várias, e não só uma deidade):

Parece familiar?

Também não consigo deixar de pensar em uma relação com “O Oceano no Fim do Caminho” e a “pousada no fim dos mundos”, lá do nono arco de Sandman, Fim dos Mundos. A ideia de que o narrador volta constantemente para a fazenda das Hempstock mas não lembra das visitas anteriores, parece estabelecer uma relação com a profissão de Gaiman (e do narrador, suponho, embora ele só use o termo “fazer arte”), que é a de contador de história/escritor.

Aliás, importante a diferenciação entre escritor e narrador. Lembro que ficava irritada com livros de crítica literária que insistiam em um ponto que para mim parecia óbvio (escritor e narrador são diferentes “entidades”), mas com O Oceano no Fim do Caminho a coisa não é assim tão clara (e ter lido o post de Amanda Palmer sobre o livro não ajudou muito nessa diferenciação, já que ela insiste que é o mais pessoal dos livros do Gaiman). Aí em um primeiro momento você se pega pensando “Será que o pai do Gaiman traiu a esposa com uma governanta/babá e toda essa história de pulga/Ursula foi o jeito que a criança que ele era inventou de escapar daquilo?”. Porém, nos agradecimentos no final do livro ele diz “a família neste livro não é minha própria família”, dando a entender que o que ele usa é o espaço da sua infância, não as pessoas.

Mas e por que Amanda Palmer falou em livro pessoal? De novo, aos agradecimentos “Eu escrevi este livro para Amanda, quando ela estava longe e eu sentia muitas saudades dela”. Ahhh, sim. A desculpa que dão para os pais do narrador para o sumiço de Lettie é que ela foi para a Austrália. Um oceano entre eles. Caso você não seja meio obcecado por Gaiman como eu sou, aos detalhes: o momento em que a Amanda Palmer estava longe dele, foi justamente quando estava gravando seu último álbum, na Austrália. Pronto, fechou. O Oceano no Fim do Caminho é uma declaração de amor dentro de uma história, assim como Gaiman em Smoke and Mirrors deixa na Introdução um conto como presente de casamento para um casal de amigos.

Tem mais, não acho que seja “só” isso. Há uma declaração de amor aos livros e suas histórias também. Sempre lembro de como Gaiman fala sobre uma caixa que ganhou, cheia de livros ou quadrinhos (agora não tenho certeza), e de como aquilo o salvara e, mais ainda, é em grande parte responsável pelo escritor que ele é hoje. Não estaríamos aqui falando de pousadas e oceanos no fim dos mundos ou do caminho, nem de deusas tríplices e vermes sendo retirados do pé se Gaiman não fosse em sua infância um leitor voraz.

“Ahnn… Anica, e as lágrimas?”. Pois então, não sei explicar. Há alguma coisa naquele Epílogo que me tocou profundamente. Talvez o fato de ter caído a ficha sobre a natureza de Lettie, ou mesmo aquele tom de despedida misturado com a sensação melancólica do adulto que se encontra tão distante da criança que fora. “You don’t pass or fail at being a person, dear”. Ou simplesmente o fato de saber que o narrador assim que sair dali esquecerá do que tinha acabado de relembrar, estabelecendo relação com o número de vezes que nossas próprias memórias também vão embora. “It’s easier this way“.

Eu gostaria muito mesmo que O Oceano no Fim do Caminho tivesse sido o primeiro romance de Gaiman depois de Sandman. Lembro que ler Deuses Americanos foi um pouco decepcionante porque, se de um lado ele continuava fazendo aquela ponte entre ficção moderna e mitos antigos, faltava algo, um coração para aquele livro, algo que Oceano tem de sobra. Até por isso acho que qualquer um que acabou de ler Sandman e quer conhecer algo mais de Sandman deveria ir direto para esse livro (e se você leu este livro e quer mais Gaiman, deveria ir direto para Sandman). Enfim, é gostoso de ler por causa das aventuras do narrador, mas também porque é tocante no momento em que precisa ser, com uma delicadeza única que faz com que o leitor sinta saudades de personagens e lugares que só conheceu na imaginação, do outro lado do oceano.

10 comentários em “O Oceano no Fim do Caminho (Neil Gaiman)”

  1. Ai mulher, eu nunca li Gaiman, acho ele gato, já sonhei com esse cara e quero muito esse livro.
    Teve a turnê da Intrínseca aqui em Salvador City e essa foi uma das obras que mais me interessou.
    E tá baratinho, gente!
    Beijão.

    1. Olha, Nina, acho que se não for para ler Sandman, esse é um ótimo começo, viu? Espero que a recepção aqui no Brasil seja boa, até para incentivar a Intrínseca (e outras editoras) a fazer mais disso de lançar tradução na mesma data que o original. ^^

      =*

  2. Não tem gibiteca por aí? Eu só conheci Sandman pq temos uma gibiteca aqui em curitiba. Eles tinham todos os arcos, eu matava aula no cursinho para ir lá e ler aos poucos. É uma HQ meio cara mesmo, ficava completamente fora da minha realidade na época (nos tempos de cursinho eu vivia de mesada ainda, e torrava quase tudo no bar hehehe)

  3. Um outro clique que me deu sobre a relação do livro com o mundo real, com a situação do Gaiman, é bem lá no final, quando ele tá sentado no banco à beira do lago conversando com as Hempstocks mais velhas e diz que espera poder ver a Lettie:

    “‘Well,’ I said. ‘If she brought me here to look at me, let her look at me,’ and as I said it, I knew that it had already happened. How long had I been sitting on that bench? As I had been remembering her, she had been examining me. ‘Oh. She did already, didn’t she?’
    ‘Yes, dear.'”

    Essa cena me fez pensar justamente no Gaiman absorto enquanto escreve, seja em casa no canto dele ou em algum estúdio de gravação com a Amanda, e então a Amanda deve chegar perto, ver o que ele tá fazendo, olhá-lo durante algum tempo e ele acaba nem percebendo de tão concentrado que está, só se dando conta depois.

    Claro, pode sere extrapolação, mas foi a primeira coisa que me veio à mente na hora, e não me parece tão improvável, ainda mais se tu ler o post lá da Amanda, sobre a parte em que o próprio Gaiman explica pra ela e ela realmente entende do que se trata, hehe.

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