A História Secreta (Donna Tartt)

ahistoriasecretaÉ, eu dei uma sumida. Mas sempre que eu penso “Ah, dane-se, quase doze anos escrevendo aqui, vamos fazer outra coisa da vida”, cruzo com um livro que enche minha cabeça de ideias e meudeusmeudeus eu preciso falar sobre ele. Embora ler seja um ato particular, o que vem após a leitura não é. Não digo só pelo ato de recomendar leituras para terceiros, é mais de expôr uma visão e buscar pessoas que também tenham algo para compartilhar sobre a experiência. É meio como disse o Nick Hornby naquele texto que já citei aqui:

Books come to me through recommendations, reading, browsing — sometimes through my own bookshelves — but I can’t really take part in the cultural conversation that, I suspect, isn’t really happening anyway. Everyone reads books like this, surely? Everyone switches from Jane Austen to Hilary Mantel to an old PD James that someone who was staying in the spare room left behind? (Even when I’m in the right place, it’s at the wrong time. In 2009, a passionate recommendation from a reader of the column led me to an obscure 1965 novel that the splendid New York Review of Books imprint had made available. I read it, loved it, and recommended it forcefully. If anyone was listening, then they did so only slowly: the novel was called Stoner, and by the time everyone else was reading it, I could no longer talk about it in any detail.)

E aqui estou eu, abrindo um post para falar de um livro escrito por Donna Tartt no começo da década de 90. Se deu muito falatório na época do lançamento eu não sei, porque em 1992 eu ainda estava variando minhas leituras entre um Stephen King e alguma coisa do Pedro Bandeira. A tradução saiu por aqui em 1995 – aparentemente ganhou edição nova depois que O Pintassilgo deu as caras (nota mental: a capa da edição da década de 90 é mais bonita).

De qualquer forma, mais de 20 anos de existência dão a impressão de que tudo já foi dito sobre A História Secreta, mas ainda assim eu quero falar sobre A História Secreta. O que significa que eu não vou ficar me cuidando muito sobre spoilers, até porque a própria Donna Tartt já abre o livro dizendo quem matou quem, há.

Aliás, está aí algo que comentam bastante sobre A História Secreta, de ser uma narrativa sobre crime (ou “de detetive”) meio às avessas, já revelando os culpados desde o começo e se concentrando em explicar o que causou o crime. Sabe aquela segunda parte de Um Estudo em Vermelho do Conan Doyle? Segue mais ou menos essa linha. E ao se desfazer tão rapidamente de qualquer possibilidade de criar um mistério ao redor dos eventos da narrativa Donna Tartt já dá uma dica bem grande que não é sobre quem fez. Eu iria além e diria que não é nem pelo motivo dos crimes em si, é mais um trabalho de observação das personagens.

A começar por Richard Papen, narrador-protagonista de A História Secreta. A narrativa segue em tom confessional, como já mencionado, desde o início Papen revela ter participado do assassinato do colega de universidade, Bunny. Este honesto narrador é fundamental para alguns efeitos ao longo do romance, incluindo aí algumas questões possíveis de levantar durante a leitura. Mas ok, estou me adiantando, vamos falar de Richard. Talvez a melhor frase que o defina seja aquela do comediante Groucho Marx, “Eu nunca faria parte de um clube que me aceitasse como sócio“. Sai de uma cidadezinha da Califórnia para estudar em uma universidade renomada em Vermont. Ele deseja se matricular em Grego, mas descobre que o professor não segue uma linha muito convencional: dá aula para um grupo pequeníssimo, não admite qualquer um entre seus alunos e ainda faz com que eles saiam de qualquer outra disciplina para cursar apenas as dele.

O efeito é instantâneo. Richard não apenas quer ter aulas com o professor Julian. Ele precisa. Ele tem que estar junto com aqueles outros cinco estudantes, que parecem tão diferentes dos demais universitários de Hampden. Note como as descrições que Richard faz dos cinco alunos de Julian são sempre de criaturas sobrenaturais, superiores aos demais (os “angelicais” gêmeos, por exemplo), e quando fala dos demais alunos é sempre com uma leve pontada de irritação. Mesmo Bunny, que é o mais “comum” entre os alunos de Julian, Richard ainda assim é bastante generoso em suas descrições – deixando inicialmente que possíveis falhas de caráter de Bunny serem percebidas só pelas ações da personagem, não por julgamentos do narrador.

Essa característica de Richard é importante para compreender como ele se vê quando finalmente é aceito por Julian, e a razão pela qual estar ali entre eles é tão importante. A tentativa desesperada de ser íntimo deles, de ser parte do grupo está diretamente ligada ao fato de que ele nunca será. E não é por causa do dinheiro, porque mais para frente fica claro que Bunny e os gêmeos também não são ricos. Mas, mais do que isso, esse desejo de fazer parte acaba causando um efeito interessante quando finalmente a narrativa chega ao ponto do crime em si.

Para começar, a morte de Bunny não é o único crime, é inclusive consequência do primeiro. Buscando experimentar ideias apresentadas por Julian durante a aula, o grupo (menos Richard, vale notar) passa a praticar bacanais para tentar sair do controle, deixar a mente em outro estado. Por muitas noites bebem muito mas não atingem tal efeito, até que em uma noite (por coincidência, sem a presença de Bunny) finalmente conseguem – e acabam matando um fazendeiro local.

Why so linda, Donna Tartt?

E se conto tudo isso é porque foi aqui que A História Secreta me conquistou de fato, virou aquele livro bom que se distingue. Henry (uma espécie de líder do grupo) revela o acontecido para Richard. Por saber o que o leitor já sabe sobre Richard (o desejo de ser parte do grupo), Henry o faz de forma que Richard acabe se sentindo parte de tudo aquilo. Ele reage melhor do que Bunny, que ao saber do ocorrido passa a agir de maneira estranha, como uma bomba-relógio pronta para explodir.

Sim, vem daí a “razão” para matar Bunny. Mas antes que você dê um passo para frente, vamos voltar ao ponto principal: um crime foi cometido.  Pelo que fica claro no recorte de jornal que Bunny guarda, um crime chocante, extremamente violento. E lá estão os jovens bem educados (e, no caso de Henry e Francis) ricos, comentando sobre como poderiam fazer para que Bunny não os entregasse para a polícia.

Percebeu? Se você está vendo a história com os olhos de Richard (e você está), naquela altura você está, como ele, com um pavor horrível de Bunny e sua falta de controle que está colocando todos em risco. Aí você para e pensa que bem, Bunny é o único que está agindo como esperaríamos que as pessoas reagissem. Horror ao que os amigos fizeram, horror maior ainda que estejam saindo sem qualquer punição.

E por Richard ser o narrador, fica fácil ser mais uma das mãos que empurram Bunny do penhasco. Mesmo o momento do funeral de Bunny, é interessante como Richard descreve a família Corcoran como um bando de interesseiros que no final das contas ficaram até felizes com a morte do rapaz. O efeito é parecido com o que Vince Gilligan causa com Breaking Bad e seu Walter White: desde o início sabemos que ele está fazendo algo errado, mas ficamos lá, torcendo pela personagem cujo compasso moral é obviamente o mais questionável.

Mas se você associar a leitura de A História Secreta com qualquer notícia de algum riquinho que cometeu um crime horrível e acabou saindo de boa (acidentes de trânsito? índios e mendigos queimados na rua?, etc), a leitura fica pesada, difícil. Não tem como torcer por ninguém ali. Confesso que esse jogo com o leitor era mais ou menos o que eu esperava quando assisti ao filme The Riot Club (o que infelizmente não foi o caso, hehe).

Após a morte de Bunny, vem uma já esperada ruptura dentro do grupo. O motivo real para tal. Confesso que aqui foi um dos momentos que não me agradaram no livro: se por um lado transformar Henry de um Sherlock Holmes para um Moriarty foi muito esperto e criou momentos perfeitos de tensão (o sujeito planta rosas e você pensa que ele está fazendo algum novo experimento com veneno), por outro transformar a causa real de conflito entre eles o fato de todos ali estarem apaixonado por Camila me pareceu uma saída meio fraca para chegar ao clímax do romance.

Ok, eu entendo que essa paixão por Camila pontua o essencial, de que eles não se sentiam culpados pelos crimes, sentiam medo de serem presos pelos crimes (o que é bem diferente). Perceba que o que leva Henry a puxar o gatilho não tem nada a ver com a situação que se desenhou no quarto de hotel, mas o fato de que ele a) não contava mais com a aprovação de Julian e b) teria que se entregar pelos crimes que cometeu.

Aliás, sobre Julian, uma questão que veio em mente depois de um tempo: fiquei com a impressão de que de alguma forma ele sabia sobre o fazendeiro. O que ele não sabia (e aí a decisão por abandonar os alunos) era sobre Bunny. E se ele some não é tanto por decepção com os alunos, mas mais de estar bem longe para não ser envolvido em nada caso os autores dos dois assassinatos fossem descobertos.

Enfim, valeu especialmente pelas questões que levanta, bem como o desenvolvimento das personagens. Algo realmente acima da média para um romance de estreia. Curiosa agora sobre o livro que Donna Tartt escreveu depois, O Amigo de Infância (saiu por aqui em 2004, também pela Companhia das Letras).

11 comentários em “A História Secreta (Donna Tartt)”

  1. Terminei o livro há alguns poucos dias e senti o mesmo que você: torcendo pelos seres amorais que se acham superiores e encaram o mundo com profundo tédio, então, de repente, percebo a engenhosidade da autora e os atos daqueles jovens adquirem o caráter que julgamos dever ter (se formos assim tão bem comportados socialmente).

    Não creio que Henry gostasse tanto assim de Camila; eu vejo os atos do grupo mais como um descontrole emocional humano (dentro da ‘normalidade’) que eles ainda possuem; afinal, eles mataram duas pessoas, sendo uma delas alguém com quem há pouco conviviam diretamente.
    A primeira morte, um acidente de percurso. A segunda, uma necessidade (premeditada).

    No fundo, os jovens de Julian _ que sabia sim da morte do fazendeiro, pois Henry o contou, e também a mim pareceu saber do assassinato de Bunny, fazendo-o fugir quando o crime revelou pistas (a carta) que o imputariam como mentor, mesmo que indiretamente _ se apresentam como sociopatas em diferentes níveis, pois é o que o são; até mesmo Bunny que se revela mais humano (e idiota pelos olhos do narrador) e ameaça explodir a bomba que carrega enquanto chantageia o grupo.

    Também espero poder ler um dia ‘O amigo de Infância’; devo comprá-lo pela estante virtual assim como o fiz com este. Comprei-o com a capa antiga (haha).

    Já ‘O pintassilgo’ me espera na estante (hehe).

    Abraços!

    1. Esse negócio do Henry, tem aquela conversa na hora que ele está trabalhando no jardim que aponta um tanto para essa sociopatia, não? Que ele diz que nunca mais sentirá algo como o que sentiu com os crimes, algo assim. Como se cometer o crime e escapar de qualquer punição tenha transformado a experiência não em algo horrível, mas em algo emocionante – quase o efeito de uma droga. Ainda nesse paralelo da droga, impressionante como todos no final das contas dependiam de Henry – penso aqui naquele diálogo final entre Richard e Camila, em que ela diz que não pode ficar com Richard porque ainda ama Henry (ao que Richard responde “eu também”). Aquilo de eles acharem que estão vendo Henry por aí mesmo após o suicídio, etc. Eles amam tanto (idolatram?) a figura de Henry que nem percebem os horrores que ele fez.

      (Eu nem comentei no post, mas teve uma hora do livro que eu não consegui parar de ler, quando o Richard começa a descobrir o que o Henry estava aprontando contra ele – tipo o depoimento para os policiais, etc. Eu tinha CERTEZA que Richard faria algo para ferrar o Henry, e no fim, pluft, a coisa toda ficou naquele conflito com o Charles por causa da Camila.)

      E ei, leia logo O Pintassilgo! É muito bom! Na realidade acho que gosto mais d’O Pintassilgo do que d’A História Secreta (diferença mínima de amorzinho, mas ainda assim, um pouco mais para o Pintassilgo, hehe).

      Abraço =D

      1. Todos eles apresentam características sociopatas em algum momento, mas em níveis diversos:

        Henry, Camila, Charles e Francis matam um ser humano e ficam preocupados em ir para a cadeia e não com questões morais do tipo ‘meu deus, matei uma pessoa!’. Em resumo a vida segue normal até que alguém descubra o crime.

        Bunny passa a chantagear os amigos quando descobre o que fizeram; uma pessoa sensata repensaria suas amizades (hehe); no entanto, ele vai pressionando, pressionando e acaba encontrando o que procura (é picado pela cobra venenosa que cutucou).

        Julian sabe o que seus pupilos fizeram (porque ele sabe e os incentivou ao bacanal que só podia dar…) e só deu no pé quando o negócio podia feder pro seu lado.

        E Richard é o deslocado que quer ser aceito e ‘que bom que os meus amigos mataram alguém, agora posso ser fiel e guardar segredo’.

        Henry realmente se sente mais vivo quando há a possibilidade de ser preso e perder tudo (vide o conhecimento e o amor do seu mestre que ele julga um deus entre os homens); ele seria o mais amoral de todos (em termos de níveis de moralidade), mas não esqueça que Francis faz boa parte do trabalho sujo de lidar com a polícia e livrar o grupo de ser descoberto, enquanto Henry bola artimanhas de se livrar custe o custar como você observou.

        O lance com a sociopatia chega a ser comentado por Richard quando ele está lendo uma biografia (ou algumas, não lembro) de criminosos desse naipe.

        Quanto a O pintassilgo: eu faço um rodízio de escritores, e agora que li a Donna (que na foto do meu exemplar tá novinha e supergata) vai demorar um pouco até ser a vez dela novamente. No momento, estou lendo Caçando Carneiros, do Murakami, e ainda não terminei o David Copperfield (falta umas trezentas páginas) e uma amiga me emprestou um romance noir (Sexta-feira Negra) e…

        Até mais!

    1. Olha, vou te dizer: não ligo para o tamanho sobre a leitura em si, mas não fosse o kindle eu acho que me enrolaria um monte para ler O Pintassilgo, por causa do peso/incômodo na hora de ler, etc. A História Secreta já é mais tranquilo, tem acho que 200 páginas a menos heheheh

      1. Por enquanto quero livros menores em tamanho, mesmo no kindle, ando em uma fase que perco o interesse logo, ai se for menor é mais fácil ir até o fim hahaha

        1. Hahahaaah sei bem como você se sente. Tem uns tempos engatei leituras só de livros com menos de 200 páginas porque estava de ressaca literária, aí era o único jeito de garantir que não ia desistir da leitura +_+

          1. Este ano, eu até li uns de tamanho médio, acho que os únicos que foram maior que a média (anual) foram o americanah, que tem umas 516 páginas e um defeito de cor de 952 páginas ( sobre este me recuso a comentar que sandice leva o ser humano a começar um livro de quase mil páginas ao mesmo tempo que vai começar o último semestre de faculdade rsrs

  2. Oi Anica.
    Adorei o post.

    Sobre o livro, além de concordar com suas opiniões, principalmente a parte da dependência que o grupo tinha de Henry e entender que a história gira em torno dele e não de Julian como pensei num primeiro momento, também achei interessante o epílogo. O fato dos alunos mais “especiais” e diferenciados da faculdade se tornando adultos “medíocres”, sem carreira, vivendo de favor e infelizes. Enquanto os outros, os demais, os adolescentes drogados e ignorantes da faculdade deram sequência às suas vidas e alcançaram uma condição estável.

    Em princípio não vi a necessidade de dar desfecho a tantos personagens secundários, mas depois entendi a comparação que a autora quis fazer. ou não….

    Esse foi um daqueles livros que li, gostei e vou reler daqui há alguns anos, com olhos diferentes e ver referências que perdi.

    Só fiquei decepcionada com Julian. Pensei que ele teria um papel maior na história. Mas gostei basicamente de tudo. (:.

    Adorei o texto. Abraços.

    1. oiê!! obrigada =D

      muito bem observada a questão do final das personagens secundárias. sabe que enquanto lia seu comentário lembrei de outro filme, metropolitan (da década de 90). também tem essa ideia de grupo fechado cheio de gente que no final das contas parece ter um medo insano da mediocridade e o desejo desesperado de fazer parte.

      sobre o julian, realmente, ele poderia ter um pouco mais de espaço na história. acabou que ele serviu apenas para unir o grupo, se for pensar bem. o principal ali é mesmo henry (passei o livro inteiro pensando no lomax de stoner toda vez que imaginava o julian. que bizarro +_+)

      abraço =*

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