O Museu da Inocência (Orhan Pamuk)

Publicado pela primeira vez em 2008, O Museu da Inocência é o livro mais recente do escritor e ganhador do prêmio Nobel Orhan Pamuk a ganhar tradução aqui no Brasil. O romance fala basicamente do amor de um homem sobrevivendo ao tempo, mas seria injusto reduzir a obra a apenas isso. Tal como um passeio por um museu, a realidade é que O Museu da Inocência oferece possibilidades variadas de leitura, e talvez nisso resida um dos tantos charmes desse excelente livro.

Através do texto de Pamuk somos levados à Istambul da década de 70, conhecendo o protagonista e narrador da história, Kemal. Ele é um homem de 30 anos, rico, feliz e noivo de uma mulher da sociedade, tendo um futuro promissor. Uma vida perfeita, embora não seja nesse momento que ele reconheça a própria felicidade. O que o narrador nos confidencia é que ele nunca fora mais feliz do que em uma tarde passada com a amante, uma prima distante chamada Füsun, que reencontra por acaso mas que nunca mais sai de sua vida.

Como já dito, em uma leitura superficial poderíamos falar que a história é sobre o amor de Kemal por Füsun, amor que vira uma obsessão quando ele se dá conta que a perdeu, o que faz com que ele desenvolva o hábito de coletar todos os objetos que ela tenha tocado para lembrar dela. Kemal ama Füsun e toda sua vida (e narrativa) se dá em função dela a partir do momento em que a garota aparece. Mas a sensação que dá é que ele não enxerga que o amor não é recíproco, pelo menos não na medida em que faria ambos felizes.

O interessante na narrativa sobre o amor dessas personagens é que Pamuk utiliza uma série de vezes o recurso de flashforward, seguindo uma narrativa linear da década de 70 até o fim da década de 90, mas em alguns momentos fazendo esses saltos para o futuro. O texto já abre com um desses saltos, descrevendo a tarde que Kemal via como o momento em mais fora feliz. Outras vezes isso se repete, antecipando algo que virá a acontecer, mas com isso superlativando a paciência da personagem para conseguir reconquistar a amada.

Mas O Museu da Inocência vai além disso. Há na obra um relato das mudanças pelas quais a Turquia passou ao longo dos anos, de um tempo em que o sexo antes do casamento ainda era visto como costume “europeu” e “moderno”, até os dias mais atuais, quando as ruas e prédios pelos quais a personagem andara não mais existiam. Essa marcação do tempo, a surpresa diante das mudanças, o descompasso de quem está tão apegado às memórias que não vê o futuro chegando, aparece a todo momento na história, como no momento em que Kemal diz:

Quando vi, mais ou menos nessa época, que a boutique Şanzelize tinha fechado, fiquei penalizado não só pela perda das minhas memórias, mas igualmente por uma sensação repentina de que a vida tinha seguido em frente sem mim.

A memória é peça-chave no romance, porque é a partir dela que a personagem consegue por muitos anos o seu contato com Füsun, e manter vivo o amor (ou obsessão) que sentia por ela. É a mesma coisa que nos faz guardar uma carta de um antigo amor, a foto de algum lugar que visitamos ou o canhoto de uma apresentação de teatro em especial. Mas no exagero de Kemal tantos objetos são recolhidos que próximo ao fim ele resolve fazer o Museu da Inocência, para manter viva a memória de sua amada.

É curioso o momento em que Kemal passa a ficar obcecado por museus (visita mais de 5000 até o momento da conclusão do livro), conhecendo detalhes, investigando o funcionamento e se encantando com o que via. No que era uma pesquisa para criar seu próprio museu, é possível dizer que a personagem desenvolve uma nova paixão. E da necessidade de catalogar os itens, e contar as histórias dele (e em uma jogada de metalinguagem bem legal) Kemal pede ajuda do escritor Orhan Pamuk para contar seu amor por Füsun.

Nisso, temos um texto com duas vozes. A maior parte do tempo domina o narrador-protagonista Kemal (e é curioso ler a personagem queixando-se da escolha do autor pela narração em primeira pessoa, a partir do ponto de vista de Kemal), mas mais para o fim ele diz adeus e então Pamuk se apresenta, e assume o resto da narrativa como um narrador-personagem, que investiga a história de Kemal buscando outros pontos de vista.

É um romance lindo, porque apesar do protagonista bastante obsessivo com relação ao amor, ele ainda assim consegue através de metáforas e comparações fazer dele uma personagem bastante comum, muito crível. É impossível não se reconhecer em algumas nuances das personalidades de Kemal, e compreender a personagem, especialmente quando no belíssimo desfecho ele garante ao leitor: Que todo mundo saiba que tive uma vida muito feliz.

Vale a pena entrar nesse museu e conhecer esta história, tão sensível e tão bonita, não só sobre o amor mas também sobre a passagem do tempo. Do que nos faz feliz e como atribuímos valores diferentes a determinados objetos por conta da lembrança que eles nos trazem. Curiosamente, Pamuk resolveu fazer de fato um “Museu da Inocência”, que ainda não está pronto mas será inaugurado em breve, seguindo exatamente as descrições do romance. Sorte de quem poderá ir para Istambul e conferir. Mas como o próprio autor diz em entrevista, “deixe eu lhe dizer muito claramente que o romance veio primeiro. Para mim, a literatura está sempre na frente. O romance vale por si e eu não quero falar muito sobre o museu antes de falar o bastante sobre o livro.” E que fale muito sobre o livro mesmo, porque há camadas e camadas a serem comentadas após a leitura, isso é certo.

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