Vozes de Tchernóbil (Svetlana Aleksiévitch)

vozesNesse momento já deve ser meio difícil você não ter cruzado com o nome Svetlana Aleksiévitch, mesmo que não tenha dado muita atenção: ano passado ela ganhou o Nobel de Literatura, este ano foi um dos destaques da FLIP.  É o lado bom do Nobel (tem lado ruim?), isso de acabar atraindo a atenção do mercado editorial para nomes que poderiam nem ser publicados aqui. No caso da Aleksiévitch, por exemplo, não deu nem um mês do anúncio do Nobel e a Companhia das Letras já estava anunciando a publicação de quatro livros da autora. Bom para nós, né.

Enfim, o primeiro título publicado aqui no Brasil foi Vozes de Tchernóbil, lançado em abril (quando o desastre na usina nuclear completava 30 anos). O livro foi originalmente publicado em 1997, mais de dez anos após o acidente e é uma reunião de relatos de pessoas que viveram nas regiões afetadas pela radiação. Abre com o depoimento de Liudmila Ignátienko, esposa de um bombeiro que estava no grupo dos primeiros a chegarem ao local no dia da explosão.

É interessante notar como o relato dela parece bastante com o que fecha o livro1 – tanto que recebe o mesmo nome “Uma solitária voz humana“. O último é de Valentina Timofiéevna Apanassiévitch, esposa de um liquidador. As duas têm muito em comum. Naquele abril elas eram jovens, completamente apaixonadas por seus maridos, com a vida de casadas ainda no começo. No momento da entrevista, vivem pelos filhos e com a dor da lembrança dos horrores vividos no passado e do fim prematuro do relacionamento feliz.

Quando Aleksiévitch diz no livro que se dedica ao que chama de “história omitida, aos rastros imperceptíveis da nossa passagem pela Terra e pelo tempo“, ela não está mentindo. Através de cada voz é possível ver a madrugada da explosão e seus desdobramentos sob os mais variados pontos de vista. Mas entenda, não é uma recriação do que causou o acidente. É voltar o olhar para as pessoas que ocupavam aquele lugar, que tiveram suas vidas completamente afetados pelo que aconteceu na madrugada de 26 de abril de 1986. É, no fim das contas, sobre o que o acidente causou em suas vidas.

A nossa vida gira em torno de uma só coisa: Tchernóbil. Onde você estava, a que distância do reator vivia? Quem viu? Quem morreu? E quem foi embora? Para onde?

O horror de cada história e a tristeza que cada um carrega são marcados por elementos que se repetem: perder algum ente querido de forma bastante dolorosa, o medo, a desinformação, a desconfiança e sobretudo a perda do lar. Da sua terra, das suas coisas. Mais de um relato menciona a volta para o local proibido para colher objetos de valor sentimental (o mais tocante, na minha opinião, é o caso do homem que leva a porta de casa).

Sempre que falam em Tchernóbil a imagem que aparece ilustrando artigos normalmente é da icônica roda gigante (agora já enferrujada), ou de prédios abandonados, tudo de Pripyat, cidade que foi construída na década de 70 para abrigar os trabalhadores da usina.

A roda-gigante. Foto de Justin Stahlman.

Mas poucos falam dos moradores das zonas rurais da Bielorrússia, também bastante afetada pelo acidente nuclear. E sendo Aleksiévitch bielorussa, é natural que seu trabalho finalmente dê espaço para essas vozes. Um povo tão ligado à sua terra que foi da natureza que percebeu os primeiros sinais de que algo estava errado, não do seu governo. Que via plantações lindíssimas e não conseguiam entender onde estava aquele veneno que todos diziam ter contaminado a região.

“As pessoas do campo são as que mais dão pena, porque sofreram sem culpa, como as crianças. Porque Tchernóbil não foi inventado pelo camponês, que tem com a natureza uma relação de confiança, e não de rapinagem, uma relação de cem anos, mil anos. Segundo os desígnios divinos. E elas não entenderam o que aconteceu, elas queriam acreditar nos cientistas, em qualquer pessoa instruída como se fosse um sacerdote. E ainda por cima afirmaram para elas: ‘Está tudo bem. Não há nada de mal. Apenas lavem as mãos antes de comer'”

Sobre como as autoridades lidaram com o caso, gostei de como Aleksiévitch começa com o que é só um sussurro para mais para o fim ser uma denúncia em alto e bom som. Já nesse trecho citado acima dá para ter uma ideia de que se a tragédia era inevitável, é certo de que ela poderia ter causado efeitos bem menos devastadores não fosse a reação do governo nos momentos iniciais após a explosão.

Nesse caso em especial acho que a voz que se destaca é a de Vassíli Boríssovitch Nesterénko, ex-diretor do Instituto de Energia Nuclear da Academia de Ciências da Belarús. Quando narra seu desespero ao tentar avisar às pessoas sobre o ocorrido ou ao notar como o governo lidava com o assunto, ele é bem enfático ao dizer que poderia ter sido diferente. Como quando alega que havia iodo suficiente para que todos tomassem (e mesmo sem alarde, colocando no reservatório de água da cidade) e as autoridades acabam optando por não utilizá-lo para não causar pânico.

“Não, as autoridades não eram uma gangue de criminosos. Eles eram, antes de tudo, uma combinação letal de ignorância e corporativismo”.

Acho que o que chamou minha atenção sobre o relato de Nesterénko é de como ele nos aproxima da nossa realidade aqui no Brasil em termos de governo. De como estaríamos perdidos se algo do tipo acontecesse por aqui. Não pela radiação, mas por quem decidiria o que fazer nos minutos que uma usina explodisse. É revoltante pensar que números são mascarados para que não se tenha ideia do real tamanho da tragédia – casos de pessoas com câncer, crianças com má formações e outros problemas de saúde são descartados como herança do acidente na usina.

Que poder é esse! Um poder ilimitado de determinados homens sobre outros.

Cabe aqui um comentário à parte, de como Vozes de Tchernóbil é importante como registro histórico, não só pelo retrato que faz do evento em si, mas de como consegue captar tão bem um momento importante da história mundial, o fim da União Soviética. Nas entrevistas – muitas realizadas já depois de 1991 – as pessoas citam a descrença sobre “um tal de Boris Iéltsin”, relatam também a confusão sobre viver em um país que era parte de um todo e que então já não era mais. “Nosso país não existe mais, mas nós existimos“, diz uma das vozes.

E aos poucos fica claro como muito da reação das autoridades esteve relacionada à Guerra Fria, o não permitir reconhecer uma falha soviética. Por exemplo, procurando alguns vídeos após ler o livro (porque sim, você vai ficar curioso para ler mais sobre Tchernóbil), vi que o primeiro alerta internacional quem deu foi a Suécia, que registrou um aumento muito grande de radiação na atmosfera.

Aliás, de depoimento a depoimento fica cada vez mais evidente como a guerra parece tão enraizada na cultura local, de modo que mais de uma vez é evocada – mesmo que a contaminação radiativa não tenha sido por causa de um ataque nuclear. A guerra, Stálin, os conflitos entre os povos daquela enorme colcha de retalhos que era a União Soviética. Ao ponto de pessoas fugirem de guerras em outras regiões para procurar paz vivendo nas zonas de exclusão de Tchernóbil.

Sobre as zonas de exclusão, confesso que a todo momento pensava em Roadside Picnic (1971) e Stalker (1979) Não que o livro e a adaptação para o cinema tenham algo a ver com um acidente nuclear, mas há algo nas vozes colhidas por Aleksiévitch quando falam da zona de exclusão que lembra demais a zona descrita nas duas obras (e a existência de stalkers, é claro). Lembrei também um pouco de Aniquilação. A zona de exclusão soa quase como elemento de ficção científica, de um futuro distópico.

E é uma tentação enorme ler o livro assim, como ficção. Até que vem o tapa na cara em “A título de Epílogo”, quando Aleksiévitch fala do turismo envolvendo a região.

Você acha que isso é delírio? Enganam-se. O turismo nuclear goza de uma grande demanda , sobretudo entre os turistas ocidentais. As pessoas perseguem novas e fortes emoções, pois encontram poucas delas num mundo já excessivamente condicionado e acessível. A vida se torna chata e as pessoas desejam algo eterno.

Visitem a Meca nuclear. A preços módicos.

A ideia do turista, aquele que vai ali visitar o local e depois voltar para sua rotina, achando que aquilo não tem nada a ver com ele, pois afinal, nem tem usina nuclear perto de casa. Se você leu atentamente todas as vozes, percebe que não tem como “não ter nada a ver com aquilo”. Se pensar na quantidade de tempo que falam que as zonas de exclusão serão novamente habitáveis (quase mil anos!) é de se pensar no que poderemos fazer se no futuro tivermos que criar novas zonas por causa de novos acidentes. Tem uma hora que não teremos para onde ir. E não, ao contrário do que parece, não é um coro de vozes contra os avanços da ciência. Citando um trecho de Roadside Picnic:

“Wait a minute,” Valentine said. “Listen: ’You ask me what makes man great?’” he quoted. “’That he re-created nature? That he has harnessed cosmic forces? That in a brief time he conquered the planet and opened a window on the universe? No! That, despite all this, he has survived and  intends to survive in the future.’”

Cena do filme Stalker (1979).

Termino com alguns links relacionados:


  1. desconsiderando notas históricas, epílogo, etc. 

4 comentários em “Vozes de Tchernóbil (Svetlana Aleksiévitch)”

  1. Essa é uma das tragédias da humanidade mais horrendas que se tem notícia. Outra, igualmente hedionda, é a de Bophal na Índia, em 1984. Ambas causadas por falhas e incompetências humanas e igualmente tratadas de maneira insensata e banal pela maioria dos responsáveis pelos acidentes.
    Fico imaginando se algo assim ocorresse na Europa ocidental ou nos EUA qual seria a repercussão. Provavelmente estariam até hoje revoltados, como aconteceu com o 11 de setembro.
    Sei bastante coisa sobre Chernobil, mas desde o lançamento estou esperando esse livro entrar em alguma promoção pra poder ler e agora, com a sua resenha, aguardo ansiosamente a leitura. 🙂

    1. Eu não sabia sobre o desastre da Bhopal, vou pesquisar =]

      Meu conhecimento de Tchernóbil antes de ler o livro é mais aquela coisa de mídia/aulas. Acho que um ponto que doeu bastante (assim, tipo tapa na cara), foi no coro das mulheres uma senhorinha falando das piadas que faziam sobre Tchernóbil (sabe, aquela coisa de bicho com duas cabeças, etc.). Porque eu tenho uma vaga lembrança de na infância me referir à Tchernóbil justamente pelos efeitos da radiação. :/ Fiz as contas, lembrei que em 86 era ano de copa (arakém golman?), estávamos de mudança. Sabe, aquela coisa de todo mundo ficar chocado com as notícias mas aí meio que dar de ombros e tocar o barco porque não tem nada a ver com aquilo. =/

      1. Tem muita piada sobre isso nas internete. Tem até filme de terror no netflix (que eu me recuso a assistir) e isso é uma coisa horrível se formos pensar direito. Eu mesma muitas vezes dei risada do meme “enquanto isso, em chernobil” mas é aquilo né? a gente se comove quando conhece a história e, na época, ninguém se preocupou muito em divulgar detalhes dessas tragédias então fica uma coisa distante e a gente acredita que não tem nada com isso e até faz piada com a coisa.
        Detalhe interessante, você sabia que a música Panic dos Smiths tem uma ligação com o desastre de Chernobil? O Morrissey escreveu ela depois de ouvir um radialista noticiar a tragédia e em seguida tocar uma música do Wham!, daí o refrão:
        “Hang the blessed d.j.
        Because the music that they constantly play
        It says nothing to me about my life”
        PS:Acabei de ver o email e o arquivo que me mandou.
        Obriga,obrigada e obrigada!!! 🙂

        1. pois é, bem por aí. eu não sei se é um mecanismo para lidar com tragédias, mas de qualquer forma é um pensamento falho – o que acontece em qualquer canto do mundo nos diz respeito, sim. só ver esse artigo aqui sobre a contaminação das águas do pacífico depois de fukushima > http://awarenessact.com/officials-fukushima-has-now-contaminated-13-of-the-worlds-oceans/

          (eu não sabia dessa história sobre panic ^^ )

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