Bough Down (Karen Green)

siglio-bough-down-green-1Não é de propósito. Juro que queria embarcar na onda e ler Graça Infinita do David Foster Wallace agora que a tradução do Caetano Galindo chegou (tá bonito de ver o Verão Infinito lá no Posfácio, btw), mas serei daquelas leitoras atrasadas que em uns anos vai encher o saco de todo mundo que leu querendo conversar sobre o livro. É que eu já comecei a leitura uma vez (ainda em inglês) e sei que ele demandará uma atenção que no momento não posso dar. Enfim, não deu. Ainda.

Negócio é que nessa avalanche de reportagens anunciando o lançamento da Companhia das Letras, acabei lendo uma assinada por Paulo Nogueira que saiu na revista Época. Fala daquilo que temos lido aqui e acolá mas veio com um extra: um comentário sobre um livro recentemente escrito pela viúva de Wallace, chamado Bough Down. A passagem citada por Nogueira automaticamente despertou meu interesse pela obra. Tanto que já coloquei na wishlist de aniversário – e bem, acabei de ler.

CALMA! Não fuja. Não sou daquele tipo de fã com um mórbido interesse por detalhes da morte e da vida particular de algum escritor que considera interessante. Aliás, inicialmente fiquei tão incomodada com a exposição da intimidade de Karen Green (como se eu estivesse, sei lá, espiando da janela o casal assistindo House na sala de estar) que fiz todo um jogo mental bizarro: quando batia esse sentimento de intrusão, pensava que não era sobre Karen Green e David Foster Wallace, mas sobre Hannah e Leonard de A Trama do Casamento. Pois é, eu sou meio estranha, eu sei. Mas vamos voltar ao Bough Down, sim?

O trecho citado por Nogueira1 foi esse aqui:

Tenho a impressão de que quebrei suas rótulas quando te puxei para baixo. Continuo a ouvir esse som. Quero você furioso com os políticos, quero você tentando me manipular para lhe fazer favores que eu faria de qualquer maneira. Quero você procurando os óculos, quero você tentando não gozar, quero você ficando com espinafres entre os caninos e a gengiva, resmungando com minha tagarelice ou com minha mãe. Não te quero em paz. Não essa paz.

Eu não sei explicar. Sei que é um trecho curto. E não, nunca senti uma dor semelhante a de Karen Green. Mas na hora que li sabia que seria uma obra que embora explore um sentimento bastante íntimo, consegue ser universal – falar alto mesmo para quem nunca esteve ali.

O livro é todo escrito no que a crítica lá fora chama de “prose poem”. Isso, querido gafanhoto, poemas em prosa. Eu já falei aqui em mais de um momento que poesia não é bem minha praia, então não vou me prolongar em nomenclaturas, vamos para uma descrição para que fique claro: cada página conta com alguns breves parágrafos, escritos quase como em um fluxo de consciência, sem obedecer o que seriam as regras normais de um texto em prosa. Você consegue até seguir cronologicamente a situação, mas volta e meia ela retorna para momentos anteriores ao que está descrevendo – passagem do marido em clínicas psiquiátricas e conversas com policiais na noite do suicídio, por exemplo.

Karen Green (foto de Jeff Zaruba)

Green não está contando o que aconteceu, ela está expondo seus sentimentos sobre os eventos. E é aí que Bough Down te pega, porque ela consegue emprestar palavras para o inominável. Acho que aquele parágrafo que citei anteriormente já é um bom exemplo, mas há vários outros trechos como:

What to do, what to do.

Unwrap him like the worst Christmas present ever. Wash hands. Hey, I have a spider bite on my fuck-you finger. Is he really with god?

None of this breaks his heart anymore; he no longer care that he doesn’t care. Oh the dead do fight dirty and for a while I am sick with fear, but then I get bored. The doctor says this is non-linear, inelegant progress.

Um tanto pelo formato e outro tanto pela força do que conta, a verdade é que Bough Down é uma obra para ler quase que de uma vez só. É meio viciante: como cada poema é curto, fica aquela vontade de ler mais, ir além. E é impressionante como Green não precisa partir para o óbvio para descrever momentos do luto, como a dificuldade dos primeiros encontros com outros homens ( “Smart and funny is unethical, plus it reminds you of what you’ve lost“), lidar com situações que antes faziam parte do cotidiano do casal (como o cuidado com os cachorros) ou mesmo o fato de que o médico do marido passou a ser o médico dela.

Teve um trecho em especial que me tocou profundamente, já mais próximo da conclusão do livro, quando ela fala sobre trechos grifados de livros que encontra em casa. Eu nunca tinha me dado conta de como frases que grifamos falam tanto sobre nós até ler o que Green escreveu:

Sentences have been highlighted just to demolish me when I find them. I will find them for years. They fall off the shelves, they flutter down from who knows where, they arrive via parcel post. I stuff them in my pocket and keep cleaning. Why am I sad when I pull them from the dryer later, illegible? I know what they say, what they are trying to prove. Of course I know you can’t go out to supper anymore; you’ve proven yourself incapable. No need to iterate and reiterate. You’ve won every argument except the one about my being better off. Nobody  laughs at my jokes as hard as you. Is this what you mean when you said vibrant life?

(Eu tenho o péssimo hábito de dobrar o canto da página que tem uma passagem que gostei. Como se fazer orelha de burro em livro fosse “menos pior” que rabiscá-lo. Por coincidência, esta foi a primeira vez que Fábio percebeu que faço isso. Entrei no quarto, ele com o Bough Down em mãos me pergunta “Por que as páginas estão dobradas?”. “É meu jeito de guardar trechos do que li”, respondo. Ele insiste: “Por que você dobrou estas em especial?” – e aí que percebi como é realmente algo íntimo. Por que aquele trecho me tocou? Como explicar o que via ali se ele não estava vendo também?)

Além dos poemas, Bough Down conta também com reproduções de peças que Karen Green criou para a exposição Tiny Stampede. A exposição também fez parte de todo o processo de luto da artista, e contava com imagens em miniatura que passavam a ideia de uma coleção de selos. Com algumas dá para passar um bom tempo observando a página, tentando ler o que está escrito em outros ângulos. A minha favorita é a de um corvo:

E até por causa dessas ilustrações que vale a pena ler o livro de papel – aliás, nem sei se saiu em e-book. Sobre as imagens da exposição há uma entrevista com a artista aquivale a leitura especialmente se você está pensando em ler Bough Down – as figuras que ilustram a obra realmente dialogam com o texto (o que era de se esperar, já que são frutos de um mesmo processo).

Ainda na sugestão de links, tem dois artigos no Guardian que recomendo. Um deles para quem quer saber mais sobre Bough Down (Widow’s memoir of David Foster Wallace gathers acclaim) outro para quem ainda está mais interessado na obra do marido, publicado na época que saiu The Pale King (Karen Green: ‘David Foster Wallace’s suicide turned him into a “celebrity writer dude”, which would have made him wince’).


  1. tradução dele, a partir dessa as citações serão em inglês, malz aí 

3 comentários em “Bough Down (Karen Green)”

    1. Eu ainda não li, mas tenho cá para mim que o Graça Infinita vai sofrer da maldição dos livros grandes. Aquela coisa: tamanho não importa, mas é um livro que vai tomar mais do seu tempo, então você espera um retorno maior pelo tempo investido do que esperaria de um livro menor. Aquela coisa da expectativa também, né.

      Anyway, estou pensando em deixar para ler a tradução do Caetano quando estiver naquela fase em que não tenha nada no meu kindle que eu queira ler, hehehe. Agora está fora de cogitação porque em fevereiro chega um livro novo da Claire North e uma coletânea de contos do Neil Gaiman *_*

      1. Acho que por ele ser depressivo o livro dele tem um tom de ‘eu acho o mundo uma merda e quero que quem me leia também ache… e claro há uma diferença enorme entre este jeito e o melancólico.

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