As semelhanças começam com a presença de um narrador não confiável, Faraday. Logo de cara ele descreve seus sentimentos sobre a primeira vez que esteve na mansão Hundreds Hall, quando ainda era criança: uma grande admiração e desejo de ser parte daquilo. Faraday era filho de pessoas humildes, ainda jovem perdeu a mãe e com esforços do pai conseguiu seguir carreira na medicina, e é como médico que retorna à mansão, para cuidar da empregada da família Ayres. Quando chega ao local, descobre que ele não tem mais nada a ver com as memórias de sua infância: decadente e caindo aos pedaços, Hundreds Hall aparece como um símbolo do que as Guerras fizeram com as famílias mais ricas da Inglaterra.
Ao conhecer os Ayres, Dr. Faraday aos poucos começa a conquistar a confiança deles. Seja na paciência como lida com a matriarca, ou mesmo com a generosidade em tratar de graça a perda de Roderick, os laços com a família iam se estreitando. E assim ele conseguia acompanhar de perto a ruína do que antes tinha sido um dos sobrenomes mais poderosos da região. A descrição que ele faz do modo como os Ayres vão lidando com o problema é bastante interessante, e bastante longa também, no final das contas: se você pega o livro esperando horror do começo ao fim, fica já o aviso: vão uns 30% da história só com Waters arrumando o cenário, digamos assim, para que então os sustos comecem.
E eu sei que isso pode desestimular alguns leitores (eu mesma pensei em abandonar o livro pelo menos duas vezes quando a parte sem horro se esticou demais), mas a realidade é que esse trabalho da autora é fundamental para a criação do efeito final da história, bem como do desenvolvimento da atmosfera de terror. Alguns momentos só assustam porque já estamos suficientemente familiarizados com Hundreds Hall (e seus habitantes). Tanto que a “estranha presença” que vemos no título aparece inicialmente de forma bastante sutil, para ir ganhando força aos poucos. Há inclusive um recurso que Waters utiliza de diminuir a tensão da narrativa (descrevendo os problemas financeiros dos Ayres, ou a rotina de Faraday como médico) para então vermos um aumento súbito da tensão, com cenas normalmente não presenciadas por Faraday, que ele descreve como contada por quem estava no lugar.
Alguns momentos são bastante assustadores, porque a presença não é apenas uma aparição: ela movimenta objetos, faz barulhos no meio da madrugada, incendeia cômodos, etc. Não há lugar seguro, não há como escapar. A situação fica de tal modo insustentável que Roderick, que se vê responsável pela família, simplesmente enlouquece, deixando mãe e irmã vivendo sozinhas na mansão – que por conta das dívidas agora sequer pode contar com o gerador para ter luz, e ainda é castigada por chuvas e o frio do inverno que se aproxima. De novo, as descrições detalhadas de Waters colaboram para a criação do clima soturno da história.
É a partir da internação de Roderick que a história sofre um desdobramento que novamente traz semelhanças com A outra volta do parafuso. Como já disse antes, Faraday é um narrador não confiável, por causa de sua obsessão com Hundreds Hall, tal como a governanta com Bly na obra de James. Da mesma forma, Faraday vai apontando aos poucos necessidades de cuidados especiais para os membros da família (primeiro Roderick, depois a Sra. Ayres), enquanto a governanta quer proteger as crianças dos fantasmas que ela acredita habitarem o local. E embora a postura cética de Faraday sobre os fantasmas acabe se opondo à da governanta, o que percebemos é que o relato dos dois acabam deixando um tom dúbio sobre a questão: há fantasmas no lugar ou não?
(Aqui vem um spoiler, então eu aconselho um pulo para o próximo parágrafo): O que eu percebi do desfecho é que se havia fantasma ali, era do mesmo jeito que Caroline acreditava que poderia ser seu irmão. Um sentimento tão forte e tão ruim sobre o lugar que acaba criando uma energia e, no caso, a tal presença. Mas ao contrário do que Caroline suspeitava, eu acho que quem era o “dono” da energia, digamos assim, era Faraday, com seu desejo insano de viver em Hundreds Hall. Por outro lado, há algo no desfecho, bem como em algumas questões que podem ser levantadas ao longo da narrativa, que dão a impressão de que não era nem questão de presença, era algo físico e real mesmo, e ainda mais perverso: tudo um plano de Faraday para conseguir o que queria. Repare como o “fantasma” não parece atacar Caroline (pelo menos até o rompimento do noivado), ou como ele nunca está presente quando há os ataques mais fortes da presença. E mesmo aquele “You!” da Caroline, acaba fazendo questionar – ainda mais que quando Faraday começa a relembrar todos os eventos, desde a morte de Gyp, ele diz “I think of Caroline, in the moments before she died, advancing across that moonlight landing. I think of her crying out: You!“. Todos os eventos descritos antes desse são eventos que ele viu pessoalmente, por que aparece então este momento de Caroline? Ele seria a pessoa que ela reconheceu?
E justamente por causa dessas questões que levanta, ou melhor, pelo modo como torna possível ao leitor questionar a natureza do que é narrado, buscando a possibilidade de uma sequência de acontecimentos além daquela que ele leu. E para quem ficou curioso, tem um video da autora falando sobre o livro (feito pela BBC na época do Man Booker):
Fiquei mega interessada na história pq adoro casas assombradas e A outra volta do parafuso. Parei de ler antes alí em narrador não confiável, volto quando depois de ler.
espero que goste do livro =D
Acabei de ver o filme: nunca li o livro.
E tive exactamente a perspectiva de Faraday ter ficado no paroxismo da ambição de possuir Hundreds Hall desde a primeira vez que lá entrou, quer por motivos de deslumbramento quer de ascensão social ou de raiva por não pertencer à classe nobre da localidade.
Antes de Faraday, Hundreds Hall viva decadência e um amor de Mãe totalmente desequilibrado entre os seus filhos, mas não a presença que se insinuou apenas com o aparecimento do Dr. Faraday.
Para mim é um multi crime narrado pelo perpetrador, tal como O assassinato de Roger Ackroyd, e com uma história com muitos pontos de contacto com Noite Sem Fim, ambos de Agatha Christie.
Adorei ler esta sua interpretação do filme, que não li de mais ninguém.
Obrigada, Teresa! Sabe que tem algum tempo que quero assistir ao filme, mas acabo sempre deixando para depois. Hoje lendo seu comentário e relendo o post a curiosidade voltou, vou rever!
(Ainda não li os que você mencionou da Agatha Christie, vou colocar na lista de livros para ler! =D )
Muito obrigada, Anica.
Quando vir o filme, notará que, no seu final, após a morte de Caroline, Faraday narra: “ And so I lost Hundreds Hall. And Caroline”.
A ordem na argumentação parece-me muito significativa, uma verdadeira pista para o espectador.
E lembra-me ainda, para além das acima mencionadas obras de Agatha Christie, de que conheço toda – mesmo – a obra publicada, e publicada sobre ela e sobre os seus detectives, uma série [também existe um filme] maravilhosa da Granada Television, “Brideshead Revisited, the Sacred and Profane Memories of Capt. Charles Ryder” – em Portugal “Reviver o passado em Brideshead” – em que os amores de Charles Ryder pelos membros mais novos dos Marchmonts são, na realidade, amores por Brideshead, pelo seu peso e significado.
Eu creio que a morte de Caroline pode ser obra do Dr. Faraday, que no fundo se ressente de ser um proletário que conseguiu um diploma. As coisas ruins so começam de verdade quando ele passa a ser um frequentador costumaz da casa.