Sandman: Noites Sem Fim

Em 2003, quando Noites Sem Fim foi publicado, houve muita agitação por parte dos fãs de Sandman de Neil Gaiman. Não foi à toa: já tinham passado sete anos desde a publicação da última história do último arco, O Despertar, e mesmo assim algumas perguntas ainda estavam pendentes e, mais do que isso, aquele gosto de “quero mais” que a leitura de Sandman sempre deixa. Era a oportunidade de rever personagens queridas, de voltar ao Sonhar e ter uma pequena amostra do que aconteceria se Neil Gaiman não tivesse resolvido criar uma série com começo e fim. E o resultado não decepciona.

Dividido em sete histórias, cada uma com um perpétuo como personagem principal, Gaiman conta com um excelente time de ilustradores, um por capítulo. Em alguns casos a parceria inédita em Sandman rende ótimas surpresas (o que dizer de Desejo de Milo Manara, por exemplo?), e as já conhecidas satisfazem a nostalgia do fã. O trabalho ficou tão bom que além de ganhar diversos prêmios, ainda foi a primeira graphic novel a aparecer na lista de mais vendidos do New York Times. A seguir, comentários capítulo por capítulo de Noites Sem Fim.

Morte e Veneza

Com arte de P. Craig Russell, com quem Gaiman já havia trabalhado no premiadíssimo Ramadan, a história mostra duas histórias paralelas: de uma ilha que possui um encanto que protege todos seus habitantes da Morte (na realidade, Alain acredita que a proteção é contra o Tempo, não a Morte), e das andanças e pensamentos do que se conclui ser um soldado pelas ruas de Veneza (jamais esquecera seu encontro com a Morte quando criança). Como o título já deixa claro, é uma história da Morte, e traz muito daquele jogo de referências tão conhecido de Neil Gaiman, sendo as mais evidentes o conto A máscara da morte rubra de Edgar Allan Poe, além do óbvio Morte em Veneza de Thomas Mann. É uma história carregada de sutilezas, e tem aquele traço típico dos outros encontros da Morte com os humanos que rendem ótimas reflexões. É um bom jeito de abrir a coletânea de histórias, sem sombra de dúvidas.

O que eu experimentei do Desejo

Com arte de Milo Manara, que conseguiu retratar como poucos a beleza e androginia que a personagem Desejo acaba pedindo. A escolha do ilustrador também se confirma como excelente porque com nenhum outro personagem seria possível ter uma história que envolvesse elementos com um tom tão sexy e ao mesmo tempo tão puro como a de Desejo. A dualidade está sempre presente, nessa história de uma moça que se apaixona e busca a ajuda de Desejo. Aqui mais uma referência literária de Robert Frost e o poema Fire and Ice, que fala tão bem dessa dualidade, e talvez até dê para extrapolar a leitura pensando na relação entre o amor e a guerra que a história acaba estabelecendo. É lindíssima, tanto o texto e quanto a arte deixam isso evidente. Desejo não mereceria menos do que isso.

O coração de uma estrela

Com arte de Miguelanxo Prado, a história de Sonho é talvez uma das que mais traz informação extra sobre o que já se publicara em Sandman, o que é até bastante previsível se levar em consideração que ele é o Sandman. Para quem acompanhou os arcos de Prelúdios e Noturnos até Despertar sabe que se há uma característica forte da personagem é a absoluta falta de sorte no amor – nenhum de seus relacionamentos dá certo. Aqui vemos o romance de Sonho por uma estrela, Kilalla, que não tem um final feliz por conta de Desejo. É a história que mostra o rompimento entre os irmãos, e é também interessante porque mostra Delírio ainda como Deleite (os olhos estão da mesma cor, roupas arrumadas, nada a ver com a personagem que se vê nos arcos de Sandman). Apesar de gostar dessas informações extras, eu não gosto muito da história em si, até porque em Sandman mesmo os outros romances de Sonho foram muito melhor retratados.

Quinze retratos de desespero

A história de Desespero é simplesmente genial. Com arte Barron Storey e design de Dave McKean (famoso pelas capas de Sandman) vemos exatamente o que o título diz: quinze retratos de desespero. São quinze pequenos recortes, a visão de quinze momentos que representam o desespero. A primeira fala de Desespero e si, as outras são as breves histórias-desespero. A arte passa perfeitamente a sensação de desespero, algo que lembra um tanto a loucura, o que seria uma consequência do desespero. Algumas histórias são brevíssimas, como a 11ª, que diz apenas “É um escritor cujas histórias já foram todas contadas. É um artista, e dedos que nunca vão capturar a visão”. Vale a pena ir além da leitura e estudar os retratos, há muito na arte que em alguns momentos fala até mais do que o texto.

Adentrando

Seguindo o casamento perfeito entre a arte e o texto, aqui os desenhos de Bill Sienkiewicz representam muito bem o que seria Delírio. Na história pessoas ajudam Delírio a se salvar da própria insanidade. Num fluxo caótico de palavras e imagens, é como se realmente entrássemos no reino de Delírio, ou estivéssemos vendo seus pensamentos. Até por causa disso ela possa parecer confusa inicialmente e pedir mais do que uma única leitura, mas vale a pena – até porque é uma das personagens mais carismáticas de Sandman, e de fato rendeu uma ótima história.

Na Península

Como Destruição é o Perpétuo que deixou seus domínios e pouco sabemos dele, o charme dessa história é justamente ser sobre ele. Com arte de Glenn Fabry, a história mostra arqueólogos escavando uma península do futuro. Exatamente isso. Nas palavras de um dos arqueólogos, eles escavam o futuro. Na Península tem relação com Adentrando, já que Destruição aparece com Delírio, e essa diz para uma das arqueólogas que os outros irmãos pediram para que ele ficasse por perto dela, porque ela estivera doente recentemente. É uma história legal, com uma personagem legal e que só dá é aquela vontade de que Gaiman tivesse mostrado mais de Destruição nos outros arcos.

Noites Sem Fim

Como já era de se esperar, o livro fecha com a história de Destino. A história foi originalmente escrita para ser ilustrada por Moebius, mas com a saúde debilitada a responsabilidade acabou ficando com Frank Quitely. É bastante breve, apenas oito páginas com pouco texto, mas no final das contas isso representa bem a própria personagem Destino, que fala pouco. É basicamente uma descrição de Destino e seu livro, que por si só é um pouco de uma história sobre a vida. É uma pena realmente que seja tão curto, Destino é uma personagem tão misteriosa que seria um deleite para os fãs saber mais dele do que já foi contado anteriomente.

***
Assim fica a pergunta: se eu nunca li Sandman antes, posso ler Noites Sem Fim?  É até possível, porque no final das contas não tem nada que vá estragar a experiência quando você decidir seguir o que foi publicado anteriomente. O problema é que algumas noções básicas se fazem necessárias para compreender as histórias, como o que são os Perpétuos e quem são eles. Sabendo isso, a leitura de Noites Sem Fim tem tudo para ser mais do que agradável, um verdadeiro prazer – e um convite para retornar ao que Gaiman escrevera antes.

2 comentários em “Sandman: Noites Sem Fim”

  1. Esta edição é realmente magistral, Anica.
    Sandman tornou-se um clássico imortal das hqs e ajudou a abrir as portas para o mercado de quadrinhos adultos de qualidade.
    E foi interessante ver Neil Gaiman de volta a seus personagens depois de algum tempo e vendo-os sob outra ótica.
    Valeu.

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