Ficção de Polpa Vol.1 (Vários)

Antes de tudo uma história para ilustrar. Há uns anos fui assistir uma adaptação de Sonhos de uma noite de verão da FAP, dita como releitura modernizada. Esperei bastante para contar essa última parte para meu marido porque sabia que ele não iria gostar muito disso, e resolvi que o melhor momento era já no meio do caminho para o teatro. A resposta dele foi um “Ah, não, vão colocar um Puck repentista na peça!”. Não, não colocaram. A peça foi excelente mas isso não vem ao caso. O que importa disso é um sintoma da criação artística no Brasil: esta necessidade de colocar as ditas “cores” nacionais em tudo que se faz, como se apenas isso validasse o que foi criado como algo “brasileiro”.

Ficção de Polpa da Não Editora chega justamente para desmentir essa ideia. Ao convidar vários escritores para formar a coletânea, a proposta segundo (Samir Machado de Machado na introdução) era esta: criar um conto de ficção científica, fantasia ou horror com completa liberdade temática. E os autores souberam aproveitar essa liberdade sem usar o conto como “meio” para apresentar brasilidades, eles fazem ficção brasileira, e de qualidade – sem a artificialidade de elementos inclusos única e exclusivamente para dizer que bem, é ficção feita no Brasil.Notei dois padrões na maior parte dos textos: eles tendem mais ao horror (que eu adoro), e grande parte deles fogem de situar o espaço. Quanto ao segundo ponto, é possivel incluir também o fato de que muitas vezes não temos os nomes das personagens. Então são histórias que podem se passar em qualquer lugar. O que é excelente em se tratando de horror, porque tomando os ensinamentos da Escola Allan Poe (há!) de Horror, o texto não pode ter excessos que distraiam o leitor do efeito que se quer causar. Se o escritor foca seus esforços em situar a personagem em um lugar específico, ele já terá perdido o leitor para quando for partir para a descrição desse local – que é muito mais relevante em histórias de terror, a questão da imagem perturbadora a ser criada como um grande quadro assustador.

O legal no caso de Ficção de Polpa é que os autores que recorrem à brasilidades o fazem de modo sutil, como um elemento que faz parte da história. Há coesão, não há estranhamento. Como no caso de Cabeça-de-Arroz (Annie Piagetti Müller), cuja protagonista em dado momento revela que roubava arroz da despensa da “madame”; ou ainda no conto de abertura, O homem que criava fábulas (Samir Machado de Machado), onde é dito que o casal criador de fábulas tinha horror aos sem-terra. São apenas detalhes, que enriquecem a história, com um propósito além de simplesmente tentar marcar que é um conto que se passa no Brasil.

Assim, o que temos em mãos é uma coletânea para agradar com absoluta certeza qualquer fã do gênero. É divertido e gostoso de ler, do começo ao fim. Alguns contos se destacam, como sempre acontece em uma coletânea, mas todos estão em um nível de bom para excelente. E há horror mesmo, e aqueles desfechos no estilo “tapa-na-cara” que vemos escritores como Ray Bradbury fazer. Seria injusto apontar favoritos, mas eu diria que Carne (Guilherme Smee) e Os internos (Gustavo Faraon) estão entre os que mais gostei. O fígado (Silvio Pilau) é simplesmente hilário, e O Desvio (Antônio Xerxenesky) vem lá cheio das referências que eu tanto gosto (“Narciso acha feio o que não é espelho”? Não sei, mas gosto de reconhecer meu universo cultural nas histórias).

Eu adoraria falar um pouco de cada um, porque realmente gostei de todos. Porém, acredito que parte da graça é também ir se surpreendendo aos poucos, então vou deixar alguns para vocês descobrirem. Mas acredite, vale a pena ler todo o Ficção de Polpa, inclusive a “faixa bônus”, com um conto de Lovecraft. É a melhor resposta que já consegui encontrar para a pergunta “É possível fazer ficção especulativa no Brasil?”. Sim, é. E das boas. E o bacana é que encarnando o espírito das revistas pulp que inspiraram o projeto, o livro é bem baratinho (R$15,00) e a capa é muito legal, lembrando justamente essas revistas. Se você gosta de horror, corre lá no site da Não Editora e garanta o seu, porque dá para dizer sem medo que tem gente nova no pedaço, e eles são de primeira.

7 comentários em “Ficção de Polpa Vol.1 (Vários)”

      1. É por isso que comprei os 3 logo que saíram, porque sabia que seriam de tiragem limitada.

        Inclusive o meu Vol. 1 não é nem da não editora, é da anterior, que não lembro o nome agora.

        1. é, esse meu já é uma terceira tiragem (pelo que eu entendi), então com sorte logo sai o volume 2 para eu comprar hehe
          mas depois que a dani ler o volume 1 leia vc tb, é muito bom =D

    1. falei que ia agradar o/
      é muito bom, o pessoal não se prende à ideia de “tem que ser nacional”, simplesmente conta as histórias do modo que a imaginam. e são muito boas ^^

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.