Mais apavorante do que a ficção

Era uma vez um texto que rodou bastante a internet ali no começo dos 2000 (ou seja, ainda era recebido em e-mails ou aparecia como posts em fóruns de discussão) e apresentava um título que prometia a versão “verdadeira” dos contos de fadas. Saem os casamentos com príncipes e finais felizes, entram histórias macabras com olhos arrancados, pés decepados e muito, muito sangue. Mas esse uso do termo “verdadeira” é coisa típica de internet, a certeza de saber o que na realidade não sabe, né? Porque a ideia de uma versão ser a “verdadeira” vai contra a própria natureza dos contos, que segundo Angela Carter, tratam-se de “histórias anônimas que podem ser reelaboradas vezes sem fim por quem as conta“.1

Então, quando falamos de contos de fadas não temos uma versão “verdadeira”, mas várias – é normal a releitura, o reconto. E essa natureza mutante do conto popular continua viva, porque mesmo que o diálogo inicial parta de uma versão de conto lá da Coleção Disquinho, por exemplo, ela segue sendo recontada em livros, filmes e afins. E eu não estou falando desses live-actions totalmente dispensáveis da Disney, é óbvio. Falo de releituras como o filme The Ugly Stepsister (dirigido por Emilie Kristine Blichfeldt) e o livro Sour Cherry de Natalia Theodoridou.

Em Sour Cherry (publicado agora em 2025, ainda sem tradução no Brasil) temos uma mãe nos tempos atuais contando para o filho uma história sobre o relacionamento abusivo que viveu com o pai da criança, usando para isso uma versão própria da história do Barba Azul. A estrutura é muito interessante porque ela se divide em duas partes: uma é o tempo atual, os devaneios de uma mulher visivelmente nervosa por causa de algo que ocorreu (e ocorrerá), a outra é o tempo do conto. O leitor salta de uma parte para outra e começa a perceber aos poucos o que é que a mãe tenta dizer para o filho.

É, como eu disse, uma história sobre abuso. O que a mãe tenta entender e ao mesmo tempo explicar para o filho, como é que esses homens-monstros são criados e como é que conseguem circular por tanto tempo sem que ninguém perceba sua monstruosidade. É também (e talvez aí a parte mais dolorida), um jeito de responder a pergunta “Mas por que é que você não o deixou?”.

Eu sempre concordei com o Poe quando ele dizia que quando você partia para uma alegoria acabava abrindo mão do efeito. E aqui, em uma visão pessoal, eu acreditava que se o efeito era o terror, essa tentativa de “dizer o outro” acabava desviando o foco da história, prejudicando justamente a melhor parte, provocar tensão e medo no leitor. Com Sour Cherry eu mudei minha opinião: o que mais apavora ali não é o conto do marido que mudava de cidades por causa de uma maldição e deixava um rastro de morte por onde passava. É justamente a situação muito real de conviver com um homem que pode a qualquer momento te matar.

Quando a narradora explica que só as mulheres que já foram mortas pelo homem conseguem enxergar os fantasmas que o seguem, o outro texto que temos ali é o de mulheres que só conseguem perceber um homem como abusivo, ou enxergar as violências que ele cometeu em relacionamentos passados, quando ela também já está sofrendo a violência. Você sai do conto e é puxado para a realidade, mas isso em nada prejudica o efeito, na realidade o amplia.

É a mesma coisa com The Ugly Stepsister, um filme que conta a história de Cinderela sob o ponto de vista de uma das filhas da madrasta malvada. Elvira é uma garota completamente fora do padrão, ainda mais quando passa a viver com Agnes, que tem toda a aparência de uma princesa de contos de fadas. Através de uma série de acontecimentos, as irmãs disputarão o interesse do príncipe: Agnes para sair da casa onde era maltratada pela madrasta, Elvira porque sonhava que um dia o Príncipe se apaixonaria por ela (e bem, porque o golpe que a mãe deu no pai de Agnes não deu certo e elas estavam sem dinheiro, o Príncipe seria a solução para isso).

O que vemos a partir do convite para o baile onde o Príncipe escolherá sua amada é uma corrida para Elvira se ajustar aos padrões. Pense em body-horror, com cenas envolvendo cílios postiços costurados e um nariz sendo quebrado para ser remodelado. De novo somos jogados para a realidade, e isso amplifica o efeito de terror: as mulheres REALMENTE fazem isso, elas passam pelos procedimentos estéticos mais bizarros, e muitas vezes apenas para agradar o olhar de um homem.

Mas o mais apavorante em The Ugly Stepsister é a relação de Elvira com a mãe. Rebekka sabe que não é mais jovem, vê nisso uma perda do apelo que tinha no passado. É por isso que não é ela que vai ao baile seduzir o Príncipe, e então força a filha a se adequar aos padrões de beleza para seduzi-lo. Para mim a frase mais marcante (e o momento mais assustador) do filme é quando a mãe – amparando a filha que cometera a loucura de cortar os dedos do pé para que eles servissem no sapato de Cinderela – diz para a filha: “Você cortou o pé errado, meu amor“.

E se comento sobre essas histórias excelentes é para além de recomendá-las, puxar também uma frase que li em um artigo que saiu no El País sobre um livro de Ana Llurba, onde é dito que “Os contos de fadas, se poderia dizer, são espelhos que refletem a época em que foram “recontados”“. Se nossos contos estão sendo recontados como histórias de terror – sobretudo vivido por personagens femininas, talvez seja o caso de perceber que a ficção já acionou a luz vermelha de alerta.

 


  1. essa definição está na introdução do 103 Contos de Fadas que saiu pela Companhia das Letras 

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