Sobre finais

A internet de quem gosta de ler está cheia de exemplos de inícios marcantes de livros – aquelas primeiras frases inesquecíveis que servem como um excelente cartão de visita para uma nova obra. Por exemplo, dia desses eu abri um que começava assim: “Eu queria ser uma vadia quando eu crescesse.1 e imediatamente pensei “Ok, esse aqui vai para a lista de livros para ler”.

Mas estava pensando aqui que pouco falamos de finais. Eu sei que é sintoma desse tique que acompanha as pessoas que comentam livro na internet desde os tempos dos blogs literários, o “não posso falar muito senão dou spoiler”. Quem lê meu blog sabe que costumo alertar, mas nunca deixo de comentar detalhes que acredito relevantes. Como falei há uns tempos com alguém que perguntou sobre isso no Twitter, não estou vendendo livro, estou falando da minha experiência de leitura. Então, como é que vou me privar de falar sobre um desfecho se ele é importante?

E eu sei que aqui você está revirando os olhos e dizendo que o fim sempre é importante, e eu concordo. O problema é que algumas vezes você tem aquele momento A-HÁÁÁ!! e quer falar dele, e aí não pode pois spoilers. É um pouco como escrever um longo post sobre Midsommar sem comentar o sorrisinho da Dani no fim. O filme todo é ótimo, o desenvolvimento da tensão é algo acima da média e algumas imagens são lindas. Mas aquele sorrisinho, sabe.

Em literatura, é mais sobre perceber algumas opções do autor do que sobre o enredo em si. Não é exatamente saber quem é o assassino do whodunnit, mas é mais entender porque a escolha de personagem x como assassina pode subverter expectativas do leitor, e aí causar um efeito interessante. Não sei se consegui deixar claro, mas não é questão de saber se o cachorro morre, se o casal vai ficar junto, se o mundo acaba – é mais sobre observar o formato da peça de um quebra-cabeça, e não a imagem que todas juntas revelam.

Vou usar três leituras mais ou menos recentes como exemplo para ver se consigo explicar o tipo de final que acho que não dá para deixar de comentar. E aí é óbvio, se você é da turma do horror ao spoiler, é melhor voltar aqui em outro momento (os três livros citados são bem bons e recomendo, um deles já tem tradução no Brasil, outro vai ganhar tradução ainda em 2024 e o último eu não sei.)

Começando com Está Tudo Bem da Cecilia Rabess. Ele saiu em junho do ano passado pela Paralela com tradução de Stefanny Dias e infelizmente foi muito mal divulgado, especialmente lá fora – basicamente foi vendido como uma comédia romântica entre uma guria negra de esquerda e um cara branco trumpista. Não que o enredo não se sustente principalmente na relação entre os dois, mas o tom não é de comédia romântica nem de perto.

Enfim, o livro faz um comentário bem interessante sobre os anos pré-Trump nos Estados Unidos, mas o que de fato agarrou meu coração foi o desfecho. Durante toda a história a protagonista Jess repete a frase “Está tudo bem”, é uma espécie de refrão. Mas o leitor sabe que quando ela diz “Está tudo bem”, as coisas NÃO estão bem. E aí chegamos no fim, o casal protagonista no sofá assistindo à cerimônia de posse de Trump. Ela horrorizada com as coisas que estão sendo ditas. Termina a transmissão, o namorado desliga a tv e diz “Viu? Está tudo bem.” É a última frase do livro, e o leitor que acompanhou o refrão de Jess sabe bem o que significa.

Outro exemplo é Os Maridos de Holly Gramazio, que chegará no Brasil mês que vem pela Intrínseca, com tradução de Mariana Moura. Ok, esse sim é uma comédia romântica. Lauren um dia descobre que seu ático está gerando uma infinidade de maridos: desce um marido novo, a vida muda completamente. É uma crítica bem escancarada aos tempos de aplicativos de encontro, mas é divertido e vale a leitura. Algumas situações engraçadas, outras bem tensas (por exemplo, quando o marido é abusivo, a tensão para saber como ela vai convencê-lo a subir no ático para desaparecer é enorme).

Mas o pulo do gato para mim foi o final. Porque passamos o livro todo lendo a história sob o ponto de vista de Lauren, mas o último capítulo é todo sob o ponto de vista de Sam, o marido final. E é um capítulo curto, mas mesmo assim com a mudança de perspectiva o leitor consegue captar que sim, Lauren teve seu final feliz. Ah, sim. Para divulgar o livro lá fora criaram um gerador de maridos.

E aí chegamos na minha leitura mais recente, The Sleepwalkers de Scarlett Thomas (sem tradução no Brasil). É um thriller contando a história de um casal em lua de mel em uma ilha na Grécia a partir de cartas e outros documentos. A primeira metade do livro tem um tom que é qualquer coisa como David Lynch e romance gótico batido no liquidificador, depois a coisa é meio seu Cebola, Floquinho e Cascão correndo em círculos gritando “O que está acontecendo?! Eu não sei!!”.

E para um thriller é lógico que esperamos um final fechadinho, um “foi fulano com o castiçal na sala de música”, mas a autora passa uma rasteira no leitor: ela dá um desfecho, mas ao mesmo tempo deixa o final em aberto – tão em aberto que o leitor chega a se questionar se realmente houve algum crime. Mas é meio um jogo, algo que te faz voltar alguns capítulos para reler e confirmar sua interpretação. E isso só é possível porque a história, como comentei antes, é montada a partir de arquivos, mas os arquivos foram danificados então não temos acesso ao todo. Inclusive, a última frase é incompleta: “Eu espero que você leia tudo isso, e mesmo que você não leia, por favor, mantenha a salvo para

Pans!

Eu gostei porque fazia tempo que eu não lia um mistério e ficava pensando na história depois de concluída. Normalmente aceito o desfecho e a explicação, algumas vezes me sinto boba por não ter percebido pistas óbvias, mas é isso. Com The Sleepwalkers e aquele final fechado e ao mesmo tempo em aberto fiquei relendo trechos só para confirmar minha interpretação (e aí sim, eu não vou dizer qual é porque spoilers e irrelevante, é minha).

E sabe o que esqueci de dizer? Que apesar de gostar de finais e achar que eles merecem um espaço para comentários, eu mesma sou péssima com desfechos. Se deixar eu fico escrevendo, escrevendo, escrevendo e bem, meio que preciso de uma Átropos cortando a linha aqui.


  1. do livro I Love You So Much But It’s Killing Us Both de Mariah Stovall 

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