In Memoriam (Alice Winn)

“Nossas meninas estão longe daquiNão temos com quem chorar e nem pra onde irSe lembra quando era só brincadeiraFingir ser soldado a tarde inteira?

(Soldados, Legião Urbana)

In Memoriam de Alice Winn (lançado em março de 2023 e ainda sem tradução no Brasil) começa com uma sequência de recortes de jornais. O primeiro é uma página de um informativo de um internato inglês, publicado no final de junho de 1914. No editorial, Cuthbert-Smith comenta que com o fim do período os mais velhos estão partindo para a glória em Oxford, Cambridge e Sandhurst. “Que nossos futuros sejam tão brilhantes quanto os deles!“, é a última frase do editorial.

O informativo seguinte (de outubro do mesmo ano) já traz uma lista de alunos e ex-alunos mortos em combate ou por causa de ferimentos durante os primeiros meses da Grande Guerra. Entre os mortos, está o editor Cuthbert-Smith. Morto aos 18 anos de idade.

Fora a tristeza e indignação de ler sobre meninos morrendo ainda nos anos iniciais da guerra, os recortes de abertura do romance poderiam ser lidos com o mesmo distanciamento com que lemos as notícias nos jornais atualmente. É um atestado ao talento da Alice Winn que uma releitura dessas mesmas páginas após a conclusão do romance falem tanto, e toquem tão profundamente ao leitor.

Há nos recortes uma breve apresentação dos nossos protagonistas, embora ainda não seja possível saber que serão eles: no primeiro informativo na coluna ao lado do editorial há um texto comentando sobre um debate proposto por um certo Mr. Ellwood, sobre a guerra ser um mal necessário. Há uma piada com um certo Mr. Gaunt, que se posiciona contra a guerra (um pacifista, apesar de excelente pugilista). Depois há também um poema do mesmo Ellwood exaltando a beleza noturna do internato Preshute. Novamente: tratam-se de trechos que pouco falam para o leitor, mas que terão um peso enorme após a leitura.

Depois do in memoriam para dois ex-alunos mortos na guerra (Cuthbert-Smith e Clarence Roseveare), a história começa. Sob o olhar de Gaunt (nosso pugilista pacifista) vemos um dia comum na escola naqueles dias em que a guerra já tinha dado início, mas ainda não os atingia diretamente. Protegidos no internato, eles ainda veem a guerra como uma brincadeira, ou ainda, como uma forma de tornarem-se homens de verdade. Talvez pela educação que receberam, tão abarrotada de clássicos que fazem citações em grego uns para os outros, a ideia de atingir a glória eterna através da bela morte parece povoar as mentes de quase todos ali.

Gaunt, porém, tem um outro problema além do posicionamento contrário à guerra. Ele é meio inglês, meio alemão. Ali naqueles primeiros dias de guerra, ele se divide entre o inglês Henry que estuda na Preshute e o alemão Heimrich que foi passar as férias em Munique com os primos. O bullying é constante na escola, e contra Gaunt nesse período ganha forma como acusações de que ele (ou sua família) são espiões da Alemanha.

Já Ellwood é o menino de ouro inglês, um dos garotos populares de Preshute. De família rural rica, cresceu na segurança oferecida por seu privilégio de classe. Talvez justamente essa segurança tenha colocado em seus olhos uma lente cor-de-rosa para observar a Inglaterra, que tanto ama: a Inglaterra é mágica!, diz ele várias vezes para Gaunt.

E com personalidades tão distantes, é de se imaginar que uma amizade entre os dois seria difícil – mas anos de convivência na escola, além de uma paixão mútua por poesia, acaba criando não só uma forte amizade. Naqueles primeiros momentos de guerra e últimos anos de adolescência, tudo é extremamente incerto, mas não há dúvidas: Ellwood e Gaunt estão apaixonados.

Mas agora a coragem que temos no coraçãoParece medo da morte mas não era entãoTenho medo de lhe dizer o que eu quero tantoTenho medo e eu sei porquêEstamos esperando

(Soldados, Legião Urbana)

Gaunt ama Ellwood. Ellwood ama Gaunt. Nas primeiras páginas o “mutal pining” é tão sólido quanto o livro em nossas mãos. E é evidente que dado o momento histórico, o fato de que são dois garotos é um ponto de conflito para ambos. Naquele momento na Inglaterra a homossexualidade ainda era crime (apenas em 1967 passou a ser permitida), então poderíamos entender a hesitação em assumir o amor um pelo outro. Mas o medo de ambos (principalmente de Gaunt) está mais associado ao medo de rejeição do que qualquer outra coisa. Gaunt acredita que Ellwood esteja só brincando, que depois que terminar os estudos vai casar com Maud (irmã de Gaunt) e viver a vida de um gentleman. Por causa disso se retrai e afasta qualquer possibilidade que não seja a amizade, o que por sua vez faz com que Ellwood não revele seus sentimentos.

É um período curto do romance que vemos dedicados ao tempo dos dois em Preshute, porque logo Gaunt – mesmo sendo o pacifista dos dois, e ainda não tendo atingido a idade para se alistar – é forçado pela mãe a ir para a guerra, para afastar os boatos de que seriam espiões. Gaunt vai para a guerra ainda com 18 anos e a partir daqui o leitor precisa fazer um exercício constante de reajuste da realidade. Naqueles primeiros contatos com os horrores do conflito nas trincheiras, é fácil imaginá-lo como um homem de uns 30 anos, mas ele é, ainda, um adolescente.

O que a guerra causa em Gaunt já nos primeiros meses fica evidente principalmente na troca de cartas com Ellwood, que continuou na Preshute. Há um abismo entre a realidade vivida pelos dois, ao ponto de Ellwood não conseguir entender (e achar até engraçado) que Gaunt reclame da lama. Os horrores vão se acumulando, assim como os nomes de colegas e ex-colegas nas listas de mortos.

Aqui vale dizer o quão impressionante é o trabalho da Winn, porque algumas personagens não aparecem por mais do que cinco páginas, mas o sentimento de tristeza é real ao sabermos da morte delas. São pequenos detalhes que humanizam o que poderiam ser só nomes nas listas. Aos poucos conhecemos melhor as personagens e aí o efeito é ainda mais devastador.

Assim como é devastador acompanhar o que a guerra faz tanto com Gaunt como Ellwood. Para não transformar meus comentários em um resumo do livro, cabe dizer que Ellwood resolve se alistar por causa de Gaunt. Chegando lá, precisa se adaptar à nova realidade e também com quem é o amigo naquele contexto – um contexto onde, por exemplo, um casal homossexual foi apresentado com a opção de ser exposto e julgado ou participar de uma missão suicida para morrer “honradamente”.

Preshute de alguma forma ainda oferecia um espaço seguro para as descobertas sexuais dos garotos. Ali, um beijo poderia significar a morte para os dois. E aqui vale notar o absurdo da situação, porque naquele momento os homens que estavam lá estavam oferecendo a vida pelo país, um país que sequer permitia que fossem quem eram de fato. Por muitos momentos eu lembrei daquela frase que atribuem ao E.M. Forster já no fim da vida: “How annoyed I am with Society for wasting my time by making homossexuality criminal. The subterfuges, the self-consciousness that might have been avoided”.

Porque nas trincheiras os soldados não tinham a menor ideia se viveriam para ver o fim do conflito, a noção de tempo como um bem valioso, algo para ser aproveitado ao máximo é constante. E a vida dos nossos protagonistas durante a guerra é marcada por momentos que constantemente parecem lembrar que cada dia pode ser o último. É o que leva Gaunt e Elwood a assumirem ao menos a atração que sentiam um pelo outro.

Quem vai saber o que você sentiu?Quem vai saber o que você pensou?

Quem vai dizer agora o que eu não fiz?Como explicar pra você o que eu quis

(Soldados, Legião Urbana)

Desnecessário dizer que a trajetória de Gaunt e Ellwood será marcada por momentos tristíssimos – acho que a última vez que um livro me maltratou tanto assim foi com Uma Vida Pequena. “Era uma conversa comum. Em 1913 você poderia perguntar para conhecidos em que escola estudaram, ou o que faziam para viver. Em 1916 era isso: qual parte sua você mais tem medo de perder?“. Os eventos vão se acumulando e cada vez mais acompanhamos as transformações – mais visíveis em Ellwood – é quase como se fosse possível ver a poesia escoando da personagem conforme a narrativa avança.

Mas também há o belo. A linguagem de Winn é espetacular, o tanto que ela consegue transmitir em tão pouco é digno de nota – então mesmo passagens que quase me fizeram colocar o livro no freezer por uns tempos, ainda assim valeram cada segundo.

(spoiler grandão, melhor saltar para depois da citação caso você se incomode muito em saber detalhes da trama)

Acho que o momento em que isso fica mais claro é quando Gaunt leva um tiro na missão que sabia ser suicida. Ele olha para Ellwood e pensa “Pobre Elly, ele pensou, enquanto caía. É tão mais difícil ser deixado para trás.“. Note que é ele quem está sendo deixado para trás enquanto o grupo tenta retornar, mas o deixado para trás aqui é no sentido de achar que ele estava morrendo, e Ellwood seria a pessoa que ficaria viva, com a lembrança de quem morreu. Ainda nesse momento da suposta morte do Gaunt, tem o momento em que Ellwood se queixa para Hayes que Gaunt nunca o chamara pelo nome, e Hayes entrega para Ellwood um papel que estava nos pertences de Gaunt antes de sair para a missão. O trecho ficou assim:

Meu querido, amado, Sidney,

Não havia mais nada. Só papel branco morto, vazio e sem sentido. Uma vírgula, seguida por nada. A morte resumida pela gramática.

(fim do spoiler)

E tem também o humor – principalmente quando os meninos se recusam a perder para a barbárie, alguns como o Pritchard mais velho falando sobre Adam Bede de George Elliott na solitária de uma prisão. Os garotos de Preshute são um tanto como o Mr. Gustave de O Grande Hotel Budapeste, “Para ser honesto, o mundo dele já havia desaparecido muito antes de entrá-lo. Mas tenho que dizer, ele certamente sustentou a ilusão com uma graça maravilhosa.

E o resultado disso é que conforme o final vai se aproximando, as personagens já começam a deixar saudades. É claro que principalmente Gaunt e Ellwood, tão maravilhosos, tão complexos e tão humanos, mas também as outras, aquelas que eram só nomes nas listas lá nos recortes iniciais do livro, que aliás, também termina com um recorte do informativo da escola. Nele, um in memoriam dedicado a outro Roseveare, o mais novo, falecido um dia antes do fim da guerra. O autor do memorial dá o último soco na cara do leitor, quando diz “Após a calamidade dos últimos quatro anos, nós olhamos para o futuro com esperança, determinados a fazer o sacrifício de Cyril e de outros milhares contar para a duração da harmonia na Europa. Que nós, assim como os soldados em Waterloo, tenhamos nosso século de paz e prosperidade, pois nós pagamos por isso com sangue.

O período entre guerras durou pouco mais do que 20 anos.

***

EDITADO (19/05/2023): ainda na ressaca literária depois de ter acabado In Memoriam acabei assistindo dois filmes que vejo como complementares para o livro, e por isso estou editando aqui como sugestão. O primeiro é o documentário do Peter Jackson sobre a Primeira Guerra, disponível no Amazon Prime: Eles Não Envelhecerão.

O segundo é uma adaptação de obra homônima de E.M. Forster (por coincidência, citei uma fala de um outro momento da vida dele aqui no post) dirigida por James Ivory e por enquanto disponível no Brasil só no método Jack Sparrow, Maurice. Tem MUITO de Maurice em In Memoriam, tanto que ficou até aquela pulga atrás da orelha e vontade de ler o livro do Forster, especialmente considerando essa página do manuscrito da versão de 1932 de Maurice:

4 comentários em “In Memoriam (Alice Winn)”

  1. Daniela – Porto Alegre/RS – Professora, vegana, feminista, aprendiz. Meu peito é de sal de fruta fervendo num copo d'água. Uma esquisitona [r]existindo.
    Daniela disse:

    Nossa, eu nunca tinha ouvido falar desse livro, mas fiquei super interessada. Adorei a resenha. Tava com saudade de te ler.

    1. nhoooum, obrigada <3 fiquei tão empolgada com o livro que até tirei a poeira do blog, espero que quando ler vc goste tanto quanto eu gostei ^^

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