As coisas que perdemos no fogo (Mariana Enríquez)

Não sei bem como começar. Quero falar de tantas coisas, talvez o ideal seria comentar comentar brevemente cada um dos contos, porque todos são ótimos – algo raro em coletânea de contos, convenhamos. Se tem alguma escala de mais para menos no livro é “assustador”, e mesmo assim isso não tem relação alguma com a qualidade deles.

De forma geral o que ficou da leitura de As coisas que perdemos no fogo de Mariana Enríquez foi: como nossa história é parecida com a da Argentina e como eu nunca tinha me tocado disso. Como frases do tipo “All electronics were cheap – TVs and stereos, photo and video cameras. It couldn’t last long, said my parents, it couldn’t be true that an Argentine peso had the same worth as a dollar” me transportaram para minha adolescência em 1994, no início do Plano Real.

Dito isso, como a familiaridade acaba se infiltrando nas histórias, aumentando a tensão, criando o horror e o fantástico de uma colaboração entre a memória do leitor e a voz do narrador. Para mim, as ruas do primeiro conto (The Dirty Kid) eram as ruas do Conjunto Mercúrio da minha infância, caminhando com a narradora e o garotinho sujo até o Casquinha que ficava perto do Módulo Policial (eles ainda existem?).

Eu sei, eu sei. “O texto é uma máquina preguiçosa“, a ideia é justamente que o leitor use seu conhecimento de mundo para ajudar a ir movendo as engrenagens. Mas o que senti foi algo diferente. É como se duas canções distintas se unissem para criar uma nova canção. Certeza que eu não consegui explicar, mas caso você tenha vivido no Brasil entre os anos 80 e 90, provavelmente sentirá algo semelhante e entenderá o que quero dizer.

Além dessas semelhanças relacionadas à nostalgia, têm também as do cotidiano, e aqui captando muito bem o espírito do tempo. Sim, temos fantasmas, ets, monstros, assassinos. Mas o que realmente assusta está ali mesclado aos elementos da rotina. A violência, a depressão, a miséria, a crise financeira e política. Se está desatento, pode perder as implicações de uma frase como “but I rather forget that sad woman who wanted to take me home with her one day after class, who knows what for“.

Como já deve ter dado para perceber pelos comentários iniciais, eu vergonhosamente li o livro em inglês. Digo vergonhosamente porque o livro já saiu pela Intrínseca aqui no Brasil. De qualquer forma, a tradutora da edição gringa tem boa fama e, pelo que senti, fez um bom trabalho. Mas vá lá, é como aquele caso da Ferrante: tem coisa que só a latinidade permite. Um dia devo ler a tradução brasileira. Ou aprender espanhol? Plantar uma árvore?

Enfim. Vamos falar dos contos. The Dirty Kid foi uma ótima escolha para abrir a coletânea. Porque deixa claro que o horror de Enríquez não é o óbvio (o equivalente no cinema ao som de uma porta batendo quando a mocinha explora a casa abandonada), é aquela sensação de que tem algo ali perto de você que você ainda não consegue enxergar. E começa devagar, sutil – o medo da narradora é praticamente inexistente e aos poucos vai crescendo para o que é o maior medo de todos: o de estar enlouquecendo. Fantástico, ainda mais quando dá algumas bordoadas como “I never saw anyone compassionate enough to take him out of the subway, bring him home, give him a bath, call social services.

Em The Inn gostei principalmente de como aborda os sentimentos de Flor por Rocío sem em nenhum momento ser específica, a não ser através da crueldade da irmã (de novo, a mescla do horror ao cotidiano). E de como o que mais assusta ali não são os fantasmas, mas o passado daquele lugar.

No caso de The Intoxicated Years, a narradora conta experiências quando adolescente com as amigas em um período pós-ditadura. O negócio é que para o fim o nível de bizarrice sobe rápido, chegando em um desfecho que te pega de surpresa. A “banalidade” inicial ajuda a causar o efeito? Claro que sim. E essa banalidade misturada com o fantástico será recorrente nos contos de Enríquez, como quando a autora junta a relação da polícia e os que vivem em condições miseráveis com um tom Lovecraftiano em Under the Black Water. Como é de se imaginarnenhum Cthulhu seria mais apavorante do que policiais obrigando dois moleques a nadarem em um rio poluído que corta uma favela – o que, como a autora conta em várias entrevistas por aí, é baseado em uma história real.

Em termos de horror, Adela’s House é um dos meus favoritos, até porque eu tenho uma queda por casas mal assombradas (ou seja lá o que aconteça naquela casa). Acho que todo mundo teve uma “casa assombrada” no bairro onde morava na infância. Se você puxar de memória, sempre haverá aquela casa abandonada que os vizinhos contavam histórias assustadoras (mas que depois quando adulto, descobríamos ser só uma casa abandonada mesmo). Também gostei muito de End of Term, que é curto mas ainda assim bem assustador.

An Invocation of the Big-Eared Runt e No Flesh over Our Bones  exploram obsessões, no primeiro sobre um assassino, o outro sobre um crânio encontrado na rua. Dos dois gostei mais do primeiro, até porque a tensão aumenta conforme Pablo vai piorando, e passamos a ver o quão próximos do perigo estão a esposa e o bebê sem que tenham ideia disso. Aquela coisa de criar efeito a partir do que não é dito.

Spiderweb é ótimo, entra naquela categoria de “descaralhamento de cabeça”. A narradora-personagem consegue passar para o leitor todo seu desprezo por Juan Martín, com quem tem um relacionamento abusivo (“I always apologized so we wouldn’t fight, so things wouldn’t get worse.”). E aí quando chega no fim, você considera feliz o que (no mínimo moralmente) não tem nada disso.

The Neighbor’s Courtyard é apavorante. Eu lembro de estar lendo na cama à noite, todo mundo já estava dormindo e resolvi desligar o kindle porque se aparecesse um conto mais assustador eu provavelmente não conseguiria dormir. “But she wasn’t dreaming. You don’t feel pain in dreams“.

Green Red Orange lida principalmente sobre a depressão de Marco, fechado em seu quarto e conversando apenas através de chat com a narradora-personagem. Eu gostei demais do conto, de como Enríquez consegue captar tão bem as relações online (“But I’d rather forget them because forgetting people you only know in words is odd; when they existed they were more intense than people in real life, and now they’re more distant than strangers.“) ou em como a narradora usa as cores do status de Marco no chat para descrever a relação dele com o mundo real. “Gray is silence and death.”. Ah, sim. Ainda tem a faixa bônus: a historinha dentro da história, sobre a professora.

Fechando a coletânea vem Things We Lost In The Fire. Escolher o título para nomear o livro não vem por acaso, os contos são todos salpicados de violência contra as mulheres, mesmo que de modo sutil. Aqui as mulheres decidem combater a violência ateando fogo nos próprios corpos. “Burnings are the work of men. The have always burned us. Now we are burning ourselves. But we’re not going to die; we’re going to flaunt our scars.”

Com seus contos Enriquéz cria um mundo próprio, que reflete o nosso ampliando alguns dos nossos piores aspectos. É perturbador, e ao mesmo tempo contagiante. Dias após a leitura memórias de algumas personagens surgem, e ao mesmo tempo em que bate o alívio de ser só ficção, vem lá o lembrete de que não é tão distante assim do real.

Só para terminar: li este livro em janeiro, estou terminando o post só agora, então não vou prometer nada. Mas outro livro que está na minha cabeça desde que terminei a leitura é Fever Dream, da Samantha Schweblin. Saiu aqui no Brasil pela Record como Distância de Resgate. Pretendo falar dele, mas já deixo a recomendação aqui porque é bom demais.

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