Lincoln in the Bardo (George Saunders)

Antes mesmo de sair lá fora em fevereiro, Lincoln in the Bardo já tinha toda a pinta de ser um dos queridões do ano, aqueles que aparecem em todo tipo de lista de favoritos e volta e meia alguém te recomenda muito, muito fortemente (imagine aqui aquele seu amigo leitor com os olhos arregalados te puxando pela gola da camisa e dizendo VOCÊ TEEEEEM QUE LER ESSE LIVRO). E eu sei que nós leitores somos bichinhos esquisitos que enxergam os tais queridões com certa desconfiança, mas aqui é o momento em que eu arregalo os olhos, te puxo pela gola da camisa e digo: VOCÊ TEEEEEEM QUE LER ESSE LIVRO.

Primeiro romance do norte-americano George Saunders (mais conhecido por seus contos), é um misto de fantasia e romance histórico que gira em torno da morte de Willie, terceiro filho de Abraham Lincoln e Mary Todd. William Wallace Lincoln tinha onze anos quando adoeceu. Historiadores acreditam que tenha sido um caso de febre tifoide, que foi piorando gradualmente até que em 20 de fevereiro de 1862, o garoto faleceu. Após o velório na Casa Branca, o corpo de Willie foi enterrado no cemitério Oak Hill, em um jazigo emprestado por William Carroll – a ideia é que o corpo fosse transferido quando os Lincolns voltassem para Illinois, mas após o assassinato do presidente em 1865 seu caixão voltou no trem junto com o do pai.

Como dá para perceber, é uma história triste, mas como as melhores histórias tristes, ela não é só isso. Eu sei que pode parecer estranho dizer isso sobre um livro que tem como ponto de partida a morte de um menino de onze anos, mas Lincoln in the Bardo vem cheio de momentos engraçadíssimos, bizarros e outros tantos que dão aquela pontada no leitor que o leva a refletir sobre aspectos da própria vida.

Em entrevista Saunders disse que pensou em Lincoln in the Bardo quando um conhecido contou uma história sobre o presidente ter ido no meio da noite visitar o túmulo de Willie, tirando o filho do caixão e abraçando o cadáver. A imagem é forte, “uma espécie de Pietá”, nas palavras de Saunders, e os momentos que descrevem a dor do pai que perde o filho são fortes sem serem piegas. A ideia de fazer com que os fantasmas “entrem” no corpo de Lincoln e passem a sentir, pensar e saber o mesmo que o presidente abre uma janela para o que poderia ser o íntimo não só da figura histórica, mas de qualquer homem que chora a perda do filho.

“I was in error when I saw him as fixed and stable and thought I would have him forever. He was never fixed, nor stable, but always just a passing, temporary energy-burst. I had reason to know this. Had he not looked this way at birth, that way at four, another way at seven, been made entirely anew at nine? He had never stayed the same, even instant to instant.

He came out of nothingness, took form, was loved, was always bound to return to nothingness.

Only I did not think it would be so soon.

Or that he would precede us.

Two passing temporarinesses developed feelings for one another.”

Mas vale lembrar que o presidente é personagem secundária em uma história cheia de vozes – e é aqui que chegamos no que faz de Lincoln in the Bardo um livro tão especial. Eu sou uma ignorante completa sobre o budismo, mas wikipediando descobri que o “bardo” do título não tinha nada a ver com classe de RPG, mas trata-se de um estado de existência intermediário entre a morte e o renascimento. Daqui para frente vou me referir às personagens que se encontram no bardo como fantasmas/espíritos e afins por conta da minha ignorância sobre o assunto e a falta de um termo mais adequado, então peço desculpas desde já aos budistas.

Enfim. Willie morre e vai para o bardo. Não sei o quanto tem a ver com budismo ou o quanto são “regras” de uma mitologia criada por Saunders, mas o bardo para Willie é o cemitério Oak Hill, cheio de outros fantasmas circulando à noite, impossibilitados de cruzar os portões pretos do lugar. Nossos guias (porque seremos apresentados aos poucos ao local e seus “habitantes”) são Hans Vollman (um espírito que se manifesta como um homem de membro enorme e inchado), Roger Bevins III (fantasma com vários olhos, narizes, mãos, etc. e cortes em cada um dos vários pulsos) e o Reverendo Everly Thomas (que se manifesta com alguém com uma expressão de susto).

Os três recebem Willie e logo percebem algo estranho: o garoto não vai embora, diz que está esperando os pais. Ao longo do livro as personagens entoarão o refrão “These young ones are not meant to tarry“, e quando digo refrão é porque as personagens do bardo se colocam no romance como membros de um coro de tragédia grega, descrevendo as ações que estão ocorrendo, um interrompendo ou complementando o outro.

Essa multidão de vozes pode causar algum estranhamento inicial, mas depois que você pega o ritmo produz um efeito interessantíssimo – como por exemplo quando uma personagem vai usar um termo que descreve de forma óbvia a situação deles (que estão mortos) e outro logo interrompe, porque a negação da situação é constante, Vollman e Bevins acreditam que estão em uma “sick-box” esperando melhorar de uma enfermidade, e não que estão mortos, e isso é isso que os prende no bardo. “Here we were. Were we not? If not, who spoke? Who heard?“, eles repetem, quando confrontados.

Tanto é que o romance abre com Vollman contando (o que saberemos mais além) pela enésima vez sobre o incidente que o trouxe para sua “sick-box”, quando ambos veem Willie chegando.

My apologies. Good god. To be confined to a sick-box while still a child – and have to listen to an adult detailing the presence of a dried poop in his sick-box – is not exactly the, uh, ideal way to make one’s entree into a new, ah –

A boy. A mere lad. Oh dear.

Many apologies.

E enquanto Willie se recusa a partir porque não sabe que está morto, vamos conhecendo outras figuras de Oak Hill. Pense na última vez em que esteve em um cemitério, e ao ler lápides e placas em túmulos tentou imaginar, mesmo que por breves segundos, a história daquele nome ou do rosto estampado ali. “Puxa, esse aqui morreu só com 18 anos!”, “Nossa, olha só, é de 1800 e tanto!”. Saunders leva esse ato para outro nível, e pelas vozes dos habitantes de Oak Hill ficamos sabendo um pouco de várias figuras que estão no bardo.

Bêbados, ladrões, milionários, mães, escravos. Há de tudo ali. Há inclusive uma criança tal como Willie, e ela é a razão pela qual Vollman e Beavins sabem que não é bom que os pequeninos atrasem sua partida, assim, boa parte da ação do romance consiste em convencer Willie que ele não deve ficar.

E o bacana é que aos poucos vamos sabendo mais inclusive sobre nossos guias. O Reverendo, por exemplo, só descobrimos o motivo de estar no bardo em uma porção bem adiantada da leitura. Há um momento em que Vollman e Beavins descobrem que Lincoln é presidente e só então sabemos de quando os dois fantasmas são: Bevins de algum período entre 1849 e 1850, quando Taylor era presidente e Vollman de algum período entre 1845 e 1849, quando Polk era presidente. Lembrando, o mandato de Lincoln foi entre 1861 e 1965, Willie faleceu em 1862, ou seja, Bevins estava há pelo menos 12 anos no bardo e Vollman há 13.

Mesclado ao coro de vozes dos fantasmas de Oak Hill, o romance conta com capítulos que formam um outro tipo de coro: citações de registros históricos. Alguns são reais, outros fictícios, mas a ideia de Saunders é descrever os eventos relacionados à morte de Willie a partir dessas citações, formando uma espécie de quadro onde a soma de cada elemento formará uma imagem complexa e bela. De novo, como no bardo, as vozes se contradizem e se complementam, seja em detalhes como dizer que o tempo estava bom ou estava chuvoso, seja ao descrever os dias depois que os Lincolns perdem o filho.

E repito: pode causar estranhamento inicial, mas depois flui. E flui de tal maneira que o livro fica viciante, fala após fala é realmente difícil abandoná-lo. Se eu tivesse que usar uma imagem para descrever como eu me senti como leitora, seria uma dança em um grande salão onde eu rodopiava e mudava de parceiro durante uma mesma canção.

Tipo em dancinha de adaptação de Jane Austen

E de todas essas vozes, algumas marcaram profundamente. Talvez seja um tanto por captar o espírito do tempo, os ciclos que se repetem na História, mas Litzie Wright (escrava que não conseguia falar por causa dos abusos que sofrera) e Thomas Havens, também escravo, sempre “muito bem tratado” por seus “senhores” mas que ainda assim permanece no bardo:

And yet, still: I had my moments. My free, uninterrupted, discretionary moments.

Strange, though: it is the memory of those moments that bothers me most.

The thought, specifically, that other men enjoyed whole lifetimes comprised of such moments.

Para quem ficou curioso mas não lê em inglês, a boa notícia é que Lincoln in the Bardo está previsto para sair no Brasil ainda esse ano pela Companhia das Letras.

PS: Primeira vez que termino um livro e tenho vontade de ouvir o audio-book. Aliás, primeira vez que tenho vontade de ouvir um audio-book. Para você entender o motivo, segue a lista de pessoas que emprestam vozes para as personagens (copiada e colada da Amazon):

Nick Offerman as HANS VOLLMAN
David Sedaris as ROGER BEVINS III
Carrie Brownstein as ISABELLE PERKINS
George Saunders as THE REVEREND EVERLY THOMAS
Miranda July as MRS. ELIZABETH CRAWFORD
Lena Dunham as ELISE TRAYNOR
Ben Stiller as JACK MANDERS
Julianne Moore as JANE ELLIS
Susan Sarandon as MRS. ABIGAIL BLASS
Bradley Whitford as LT. CECIL STONE
Bill Hader as EDDIE BARON
Megan Mullally as BETSY BARON
Rainn Wilson as PERCIVAL “DASH” COLLIER
Jeff Tweedy as CAPTAIN WILLIAM PRINCE
Kat Dennings as MISS TAMARA DOOLITTLE
Jeffrey Tambor as PROFESSOR EDMUND BLOOMER
Mike O’Brien as LAWRENCE T. DECROIX
Keegan-Michael Key as ELSON FARWELL
Don Cheadle as THOMAS HAVENS
and Patrick Wilson as STANLEY “PERFESSER” LIPPERT
with Kirby Heyborne as WILLIE LINCOLN,
Mary Karr as MRS. ROSE MILLAND,
and Cassandra Campbell as Your Narrator

Eheita.

E acabei de saber que tem um especial em VR, vou ver se consigo instalar o aplicativo para testar e se der certo edito aqui para contar sobre a experiência.

4 comentários em “Lincoln in the Bardo (George Saunders)”

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