Primeiro volume da série napolitana, A Amiga Genial foi recebido lá fora com muito barulho e chegou recentemente no Brasil pela Biblioteca Azul da Editora Globo. A saber, os quatro romances da série seguem a vida de duas amigas, Elena Greco (Lenu) e Rafaella Cerullo (Lila), sendo que o primeiro conta eventos da infância e adolescência das personagens. Pelo Prólogo sabemos que já em idade avançada Lila simplesmente desaparece, não deixa vestígio algum de sua existência, e Lenu escreve os livros para contar tudo o que lembra da amiga, um tanto como vingança (embora o leitor ainda não sabe sobre o que é a vingança). É meio que a moldura que amarrará a história dos quatro livros, acredito.
“Mas… mas… é só isso?”, você até poderia perguntar. Nunca é só isso. O bacana da obra da Elena Ferrante é aquele mergulho dentro da cabeça de suas personagens, expondo seus pensamentos em sua totalidade: dos bons aos mesquinhos. Além disso, o espaço toma conta da narrativa. O bairro napolitano descrito por Lenu surge quase como personagem, uma sombra que constantemente cai sobre a vida das meninas, influenciando suas ações. E assim, mesmo que o grande conflito em algum período da vida da protagonista seja pura e simplesmente tirar nota para passar na escola, ou fugir das pedras atiradas por garotos, você percebe que essa é só a superfície, porque tem muito mais ali.
A porção que descreve a infância das meninas é relativamente curta se comparada com a adolescência, mas é a base de toda a história, por isso é tão importante. Nesse primeiro momento todas as personagens vão sendo apresentadas, criando uma espécie de mitologia do bairro pobre onde vivem Lenu e Lila. Marcado pela Segunda Guerra Mundial, o bairro conta com pessoas que fizeram dinheiro com o mercado negro, mafiosos da Camorra e muita, muita pobreza e violência. Assim, é interessante observar o lugar com os olhos das crianças para então depois vê-lo com os das adolescentes, perceber a mudança, ou ainda, como o conhecimento vai transformando o modo como elas se relacionam com os demais habitantes do local.
Na minha opinião a melhor figura para observar esta mudança de visão é dom Achille, o dono da charcutaria. Não por acaso, o primeiro capítulo (da infância), é chamado de A História de dom Achille. Note que na lista das personagens ele é descrito como “O ogro das fábulas”. Os pais proibiam as meninas de chegar perto dele, e mesmo assim a amizade das duas se inicia, segundo Lenu, quando sobem as escadas até o apartamento dele para pedir suas bonecas de volta. Para as crianças, ele é um monstro que rouba bonecas e só com o tempo elas descobrem o motivo de tanto medo dos adultos: a associação de dom Achille ao mercado negro.
E toda essa mitologia, todas as personagens, vão aparecendo ao longo da narrativa quase como figuras coladas que aos poucos montam um painel. Lenu se concentra na tarefa de contar o início da amizade com Lila, mas interrompe a linha cronológica da narrativa para explicar os motivos que faziam determinada família odiar a de dom Achille, ou a figura triste da viúva Melina, os Solara, etc. Como disse antes, é como se ela não pudesse dissociar o bairro e seus moradores de Lila, ou mesmo dela.
Nessas pequenas interrupções, também alguns registros do tempo em que se passa a história. É bem interessante ler sobre a chegada da TV no bairro, por exemplo, ou as regras que as garotas eram obrigadas a seguir – mesmo andar de carro com amigos era algo inadmissível para uma “moça direita”. É uma volta real ao passado, com imagens fortes que depois de terminada a leitura ficam vivas na memória como se o leitor acabasse de ter assistido a um filme, não de ter lido um livro.
Assim, relembrando Lila, outro elemento começa a ser tão constante quanto o bairro: a competição entre as duas. Nunca é mencionada em voz alta, nunca conversam sobre isso, mas Lenu sabe – desde o momento em que a professora Oliveiro passa a elogiar Lila – que sempre estará um passo atrás da amiga. Lila é autodidata, aprendeu a ler e escrever antes de todos. Quando os pais insistem que não têm dinheiro para continuar pagando os estudos (e defendem a ideia de que mulheres não precisam estudar), Lila passa a aprender Grego e Inglês por conta própria, só porque Lenu aprenderia na escola.
Mas aí é que está: enquanto eu lia, ficava sempre com aquela dúvida se a competição quem enxergava não era unicamente Lenu. É ela que está sempre pautando a vida de acordo com o que a amiga faz, vide o interesse em encontrar um namorado assim que Lila começa a chamar a atenção de todos os homens. Tudo o que implicaria competição por parte de Lila é dúbio, mas com Lenu (talvez até porque ela é a narradora), é sempre claro e direto: ela tem que ter as melhores notas, tem que ter namorado antes, tem que ter algo de bom para o verão em que a amiga passa a namorar alguém bonito e rico, etc.
E aí veio minha surpresa ao descobrir a razão do título. Eu tinha certeza que o “Amiga Genial” era Lenu se referindo à Lila. Mas em um diálogo próximo ao fim do livro, no dia do casamento de Lila ficamos sabendo que é ela quem chama Lenu de amiga genial:
“Qualquer coisa que aconteça, continue estudando.”
“Mais dois anos: depois pego o diploma e terminou.”
“Não, não termine nunca: lhe dou o dinheiro, você precisa estudar sempre.”
Dei um risinho nervoso e disse:
“Obrigada, mas a certa altura a escola termina.”
“Não para você: você é minha amiga genial, precisa se tornar a melhor de todos, homens e mulheres.”
Pode parecer bobo, mas se você acompanhou toda a história de Lenu até ali, o modo como se torturava cada vez que Lila dava um passo para frente (inclusive quando além de inteligentíssima, ainda ficou linda), este diálogo vem como uma pancada. E é uma pancada que Lenu sentirá em breve, quando se vê como uma estranha durante a festa de casamento.
Isso porque no final das contas, não havia competição: existiam duas meninas loucas para fugir daquele lugar. “Era essa a última novidade que ela inventara? Queria sair do bairro permanecendo no bairro? Queria arrastá-lo para fora de si, arrancar-lhe a antiga pele e impor-lhe uma nova, adequada à que ela aos poucos ia inventando?“. Lenu buscou fugir através do conhecimento, Lila através da única arma que tinha, a inteligência – lembrando que são coisas distintas. Uma precisava da outra porque tinham um interesse mútuo antes mesmo de reconhecê-lo.
Sobre Lila a narradora conclui: “Lila continuara ali, vinculada de modo flagrante àquele mundo, do qual imaginava ter extraído o melhor. E o melhor era aquele jovem, aquele casamento, aquela festa, o brinquedo dos sapatos para Rino e o pai. Nada que tivesse a ver com meu percurso de jovem estudiosa. Me senti completamente só“. Sobre ela? “Duvido de que eu fosse capaz. Estudar não adiantava: podia tirar dez nas provas, mas aquilo era só a escola (…) Nino sim, podia tudo: tinha o rosto, os gestos, o andar de quem faria sempre melhor. Quando foi embora, tive a impressão de que desaparecera a única pessoa em todo o salão que tinha a energia suficiente para me tirar dali.“
O que não dá para deixar de pensar o quanto parte da violência que as duas personagens conheceram desde a infância foi em muito o machismo – marcando suas vidas não só quando o pai arremessara Lila da janela (!!!), quando irmãos se envolvem em brigas feias para “proteger a honra” das garotas – mas também quando supostamente selam seus destinos, fazendo com que acreditem que para elas, não há saída.
E assim, o desfecho de A Amiga Genial chega de forma extremamente melancólica. Se lá para frente Lila e Lenu vão conseguir sair do bairro eu não sei. Como muitos leitores, li o último parágrafo e fiquei com aquele O QUEEEEEE? enorme estampado na testa. E claro, louca para ler logo o segundo livro.
Em tempo: há quem defenda a necessidade de saber a identidade da autora por conta do modo como ela descreve Nápoles. Vou dizer uma coisa: apesar de uma óbvia variação de grau de miséria e violência, aquele bairro e aquelas pessoas poderiam estar em qualquer lugar. Não à toa, o livro fez sucesso inclusive no fechadíssimo mercado norte-americano.
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