Operação Impensável (Vanessa Barbara)

operacaoAcho que toda pessoa que sai de uma roubada em termos de relacionamentos amorosos eventualmente chega no momento em que junta várias pistas do que parecia mostrar de forma óbvia que aquilo era uma cilada, e então se pergunta: ONDE DIABOS EU ESTAVA COM A CABEÇA? Um questionamento injusto, convenhamos. Quando tá tudo bom, quando os hormônios ainda estão lá despirocando nossa cabeça, nosso julgamento fica completamente prejudicado. Uma coisa é ver o relacionamento depois que já acabou, outra completamente diferente é enxergá-lo enquanto ele está vivo. E tem mais: alguns eventos parecem completamente banais até o momento do rompimento, quando só aí notamos que na realidade os motivos já estavam se empilhando há tempos.

O bom de saber o futuro é que podemos selecionar, reinterpretar e editar o passado à luz do que sabemos que veio a ocorrer.

E não só é algo bastante comum em nossas vidas, mas a Literatura também está cheia de histórias sobre rompimentos e esse momento do ONDE DIABOS EU ESTAVA COM A CABEÇA?. O que parece que poucos até hoje conseguiram perceber é que muitas vezes não é só uma questão de hormônios exaltados ou fatos escondidos que nos levam ao que seria uma cegueira temporária. O lance é que bem, a resposta às vezes é simples. Nossa cabeça estava num bom lugar, porque estávamos felizes e as coisas iam bem.

E digo tudo isso porque provavelmente o que mais gostei em Operação Impensável de Vanessa Barbara1 foi o trabalho da autora em mostrar esse momento de paz. Aliás, não estou usando por acaso o termo aqui – como a narradora Lia é uma historiadora especialista em Guerra Fria, as quatro partes do livro são divididas exatamente como fases do conflito: Período de paz, Early War, Mid-War e Late War (já volto a falar da divisão).

A Guerra Fria estará presente em todo o livro, seja em trechos da pesquisa de Lia (que começam a aparecer com maior frequência nos períodos de “guerra” do casal), seja nas piadas internas dos dois envolvendo o jogo Twilight Struggle ou mesmo no nome das personagens (o marido Tito, o amigo Josef, por exemplo). O curioso é que Lia constrói o relato sobre o relacionamento usando seus conhecimentos de Guerra Fria, mas quem faz a comparação inicial com a guerra é Tito:

Noite após noite, nosso jogo abordou a tensão prolongada entre os dois países, a guerra velada e as relações de poder com os vizinhos. (“Como um casamento!”, ele dizia.)

Retornando ao que falava sobre o período de paz: sei que a relação com o que é lido é completamente pessoal (porque projetamos nossas experiências no texto), mas na primeira metade do livro eu simplesmente queria abraçá-lo (sim, o livro. socorro?), porque com os recortes da vida do casal Tito e Lia (anotações de diário, e-mails, comentários de filmes, lista de piadas internas entre outros), Vanessa Barbara conseguiu captar como ninguém do que são feitos aqueles momentos em que tudo está bem, as sensações do começo da vida amorosa a dois: inseguranças logo apaziguadas, um começando a mudar a vida/o mundo do outro. E então acontece de o leitor não só identificar o que está lendo, mas de sentir saudades do seu início de namoro, entende? Junta aí o senso de humor excelente da autora (que não se engane, estará presente até nos momentos mais tristes do livro) e pronto, não tem como não adorar.

E no fundo nessa primeira metade do livro (a Early War vem em 51% no kindle) tem uma jogada bacana sobre essa ideia do que a fase boa de uma relacionamento faz com nosso julgamento. Porque Lia em momento algum esconde que aquilo acabará, não acabará bem e que, vá lá, o Tito é um escroto. As coisas ruins já estavam aqui e acolá, salpicando a fase de paz.

“O segundo ano de casamento foi ironicamente o mais fácil, pois aprendi formas de lidar com o Tito sem provocar atritos desnecessários, ficando em silêncio e esperando a crise passar – o que também pode ter sido um prenúncio. Talvez eu devesse ter sido mais megera.”

E aí é que está, por mais que os sinais já comecem a aparecer, não tem como não achar doce o que lemos ali. A escrotice do Tito contaminará esse passado só quando o leitor tiver ideia da real dimensão da dita escrotice – antes disso, dá quase vontade de duvidar do que a narradora antecipa sobre o fim. Talvez seja essa a resposta sobre onde estávamos com a cabeça, ou porque coisas que deveriam ter durado pouco tempo se estenderam por anos: por causa do mundo confortável criado por duas pessoas, que acaba virando uma espécie de porto seguro para os dois. Lembrei muito de Eu Te Amo do Chico Buarque: Se ao te conhecer, dei pra sonhar, fiz tantos desvarios/Rompi com o mundo, queimei meus navios…

E então começa a Early War. Tinha dito que voltaria para a divisão e algo que também achei bem sacado na ideia da divisão do livro é que no fundo cada fase da guerra marca uma tendência no equilíbrio do poder entre as nações envolvidas – e o mesmo se dá com Tito e Lia. A Early War do casal marca o momento em que algo de errado acontece, dispara o alarme para Lia, digamos assim. O poder de Tito nesse momento vem do fato de que ele prefere continuar mentindo sobre  que aconteceu, dando explicações cada vez mais obtusas para os questionamentos da esposa. Ele sabe das inseguranças de Lia e sabe da verdade. E finge que nada está diferente. É uma verdadeira tortura para Lia, que no final das contas parece só querer isso, a honestidade da pessoa em quem confiava o suficiente para compartilhar uma vida.

Mid-War vem com a certeza de Lia de que continuava sendo enganada, e aí a coisa se inverte: ela ganha forças para ir por conta atrás dessa verdade, o que a levou para o momento em que finalmente consegue as informações e põe fim na relação.  Por último vem a Late-War, marcando o que veio depois do rompimento. E não vou mentir: as três partes são uma pancada atrás da outra, principalmente quando pensamos no Tito e Lia do período de paz, no que eles foram juntos e no que se transformaram.

Dói também pela mentira que nós leitores sabemos ser mentira, mas que Lia em determinado momento ainda não sabe. Da crueldade do cara de transformar a desconfiança de Lia em piada (“Você acha o que, que eu tenho uma amante?“), das tintas de relacionamento abusivo que deixam claro que o problema não é a traição. O problema é o outro Tito que foi escondido de Lia durante tanto tempo, que só se revelava aos amigos do Pacto de Varsóvia.

Cheguei a pensar “Ok, Anica, você só está pensando isso do Tito porque Lia está contando a história, se fosse ele o narrador a coisa toda seria diferente” mas, sinceramente, não consigo enxergar como.

(…) Eu me importo é com o fato de você não ter mais saco de me agradar, porque é tudo muito cansativo e chato, e com o fato de que eu poderia estar bem menos triste se você me levasse para passear, se me levasse para tomar sol ou ir à piscina ou passar o fim de semana fora ou mesmo sair para jantar comigo, ou sei lá, ir à farmácia comprar ataduras.
Eu queria muito merecer mais carinho nessas coisas que você não tem vontade de fazer, mas que seriam tão boas para mim. Normalmente consigo me levantar com as próprias pernas, mas é difícil, sim, quando estou nesse estado.

Gostei bastante da escolha de deixar o 1º de abril para o fim, depois até mesmo dos desdobramentos do divórcio. Ver a descrição de Lia para o dia decisivo da vida do casal, ainda sem estar cheia de desconfiança por causa das mentiras de Tito, é um desfecho bastante melancólico, mas tenho cá para mim que é na realidade o verdadeiro fim do casal, então parece apropriado o momento em que aparece o trecho do diário.

Aparecem nos livros algumas citações da Nora Ephron e o Hertburn2, e então fiquei lembrando do livro e do que para mim parecia a dor principal da narradora: seu marido agora amava outra pessoa. No caso de Operação Impensável, o que se conclui é que o problema não era o marido amar outra pessoa, era mais a incapacidade de amar outra pessoa que não ele mesmo.

 ***

Sim, fiquei um tempão sem escrever. Na realidade, já estava quase desistindo do post sobre Operação Impensável, mas quando eu gosto muito muito muito de um livro fico sentindo esse dever moral de escrever para mais pessoas ficarem sabendo dele e aí lerem e aí contarem para outras pessoas e criar toda uma comunidade anônima de amor ximbalaiê pelo livro. Enfim, tá aí. Amemos.

“Mas Anicaaaaa, sei lá, parece meio triste, será que vale a pena mesmo?” Então, como acontece com os bons livros…


  1. A primeira edição pela Biblioteca Pública do Paraná era bem chatonildo de achar por aí, agora benzadeus, está saindo pela Intrínseca e super acessível 

  2. tem uma história bizarra, eu tinha uns, sei lá, 8, 9 anos e dizia que A difícil arte de amar era meu filme favorito?? Juro, tenho caderno de confidências de prova. Mas acho que é porque na época tinha um crush no Jack Nicholson, por causa de As Bruxas de Eastwick hehe 

5 comentários em “Operação Impensável (Vanessa Barbara)”

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