Meu coração de pedra-pomes (Juliana Frank)

meucoracaoDa minha época de solteira acostumada a voltar do bar só depois das cinco da manhã, eu lembro de um dia em que cheguei em casa morrendo de sede, abri a geladeira e tomei um belo gole de coca-cola. Calma, não é aqui que eu imito o ursinho polar e faço HUMMMMM. Negócio é que um segundo depois descobri que não era coca o que eu tinha tomado, mas shoyu. A memória do incidente que na época serviu como lição (se chegar bêbada, não abra a geladeira) voltou assim que avancei na leitura de Meu coração de pedra-pomes, de Juliana Frank. Calma, não é um livro ruim como beber shoyu às cinco da manhã. É que considerando algumas resenhas que li por aí, estava esperando algo completamente diferente dessa obra lançada em no ano passado pela Companhia das Letras.

Eu não sei bem como foi que criei essa imagem, mas a impressão que tinha é que Lawanda, a faxineira do hospital, seria uma espécie de mistura de Amélie Poulain com Macabéa, e que o livro seria todo fofo, olha aquela borboleta na capa que não me deixa mentir. Bom, eis o choque de perceber que Lawanda não tem nada de fofa ou apática. Ela é tosquíssima e justamente por causa disso muito engraçada. Aliás, o tom do romance é esse: cômico. Um humor ácido e algumas vezes beirando ao nonsense (a começar pelo primeiro capítulo, com um julgamento da autora), do jeitinho que eu gosto.

Ok, volta a fita para quem ainda não leu: Lawanda é responsável pela limpeza de um hospital, ocupando uma vaga da cota para deficientes. Não fica exatamente clara qual é a condição dela, embora considerando alguns elementos da história, dá para pensar que é algum tipo de distúrbio mental que a obriga a tomar remédios. “Essa Lawanda é límitrofe, disfarçada de maluca, ou o quê?“, perguntam no julgamento da autora. A realidade é que não importa. Lawanda é uma figura sem freio, ou pelo menos com um compasso moral meio questionável. Se realmente é necessário fazer comparação com personagem da literatura nacional, eu diria que ela é uma versão viva de Brás Cubas: ao contrário da morte que liberta a personagem de Machado, aqui seria algum tipo de loucura.

Vale dizer que Meu coração de pedra-pomes é narrado por Lawanda, ou, mais precisamente, é a transcrição dos pensamentos de Lawanda mesclado com diálogos. Com as interrupções, devaneios e tudo o que acontece normalmente conosco, quando estamos perdidos em pensamentos. Voltando ao que eu disse sobre a liberdade da personagem, esses pensamentos sem “censura”, ou ainda, sem edição, geram momentos em que na realidade a narradora nos dá um belo tapa de luva de pelica, tirando sarro do que nós levamos à sério. Há ainda uma série de chistes, que acabam contribuindo para o efeito de humor que prevalece na obra, como dá para ver no seguinte trecho:

– Limpe o quarto 307.

– Pó de chá, Lucréééééécia.

Gosto de falar um Lucrééééécia assim bem arrastado. Cada vez que a chamo, coloco um “é” a mais. Chateia e não há motivos para uma demissão.

A relação dela com a chefe Lucrécia, aliás, é hilária. Veja bem, é um livro em que mesmo os eventos importantes (um paciente morre nos braços de Lawanda, por exemplo) parecem desimportantes. Sabe, aqueles que você pensa “Mas nada acontece!”. O negócio é que acontece muita coisa, sim. A relação de Lawanda com as demais personagens é o motor da história. Cada figura que aparece ali (Lucrécia, o amante José Júnior, os pacientes, etc) de alguma maneira acaba revelando um pouco mais da protagonista, de como ela vê as coisas e, principalmente, de como é “desconectada” afetivamente de todo mundo. Como quando José Júnior se desmancha em declarações amorosas e segue o diálogo:

“Não entendi nada. Essas fotos de borboletas pintadas significam alguma coisa? Bom, eu te amo. E o amor e importante.” (…)

“Não, José Júnior. Importante é o saneamento básico.”

E aqui vale ressaltar que Lawanda não é de forma alguma burra ou mesmo ingênua. Não digo nem pelo sexo (sobre o qual ela fala sem nenhum embaraço), é de como ela usa e abusa de José Júnior sem remorso, se vira quando está em alguma saia justa que pode lhe custar o emprego. É até por causa disso (e do tom geral sempre cômico) que me surpreendi com o final, bastante melancólico na minha opinião. Não vou entrar em detalhes porque acho que não há necessidade para explicar isso, mas basta dizer que não era o que eu estava esperando, pelo menos do modo como a narrativa foi se desenvolvendo. Naquela altura do campeonato você quer é que Lawanda pegue o frigobar e os besouros que coleciona e sei lá, encontre o amor que saiba falar russo.

Enfim, discordando do julgamento lá do comecinho, não acho que seja um livro desnecessário. Um livro de humor inteligente como esse é mais do que necessário. Uma história simples e cativante, também. Não acho que temos sempre que buscar um sentido oculto em uma obra, às vezes ela é especial justamente por não ter ganas de profundidade ou de ser hermético. E então junta aí a moça Juliana Frank com a Carol Bensimon e a Vanessa Barbara e cá estou eu, empolgadíssima com a mulherada aqui do Brasil. Eu confesso que minha média de autores nacionais sempre foi uma vergonha, mas se continuar desse jeito, logo começa a ficar colado com os gringos.

Em tempo: tem uma entrevista interessante com a autora aqui. Acho que se tivesse lido antes das outras resenhas, jamais teria passado pela experiência shoyu-no-lugar-de-coca pela qual passei.

3 comentários em “Meu coração de pedra-pomes (Juliana Frank)”

  1. Gente, será que que minha resenha lá pro Amálgama de alguma forma fez ela parecer fofa? Agora fiquei com medo! ahhaahha

    Pq sim, ela não é nada fofa. Ela é bem seca e direta, e louquinha e legal e meio errada mas por isso legal.

    E realmente, as mulheres daqui estão mandando muito bem. Já leu a Luisa Geisler (além da Granta)? É outra que merece muito amor. <3

    1. vish, até fui reler a sua, mas não foi de lá que eu tirei a impressão, não. ô.O

      eu estou com o quiçá da geisler para ler no kindle, mas tenho me enrolado um tico – sabe quando você começa, lê umas páginas, aí começa outro, aí volta, aí começa outro…? então. =S

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