O fio das missangas (Mia Couto)

O lado negativo de gostar muito de uma forma de narrativa é que o leitor faz dela sempre sua primeira opção de leitura. E aí, anos e anos depois, começa a encontrar dificuldade em se surpreender. O prazer da boa leitura ainda está lá, alguns textos são de fato excelentes. Mas falta aquele “algo a mais” que te faz pensar “Como é que não conheci esse escritor antes?”. Foi justamente o que aconteceu comigo ao ler O fio das missangas, de Mia Couto. Gosto muito de contos, mas a verdade é que há tempos não sentia essa sensação de descoberta, da inclusão de mais um nome da lista de favoritos de todos os tempos.

A prosa de Couto é quase poesia. Nem tanto pelo ritmo, mais pelas imagens que evoca – o fantástico no cotidiano apresentado de maneira leve, suave. Muito cabe à interpretação do leitor, somada a verdadeiros quadros-ideias. Trata-se de algo que normalmente escritores só conseguem em um poema, como dá para ver na abertura do conto Inundação:

Há um rio que atravessa a casa. Esse rio, dizem, é o tempo. E as lembranças são peixes nadando ao invés da corrente. Acredito, sim, por educação. Mas não creio. Minhas lembranças são aves. A haver inundação é de céu, repleção de nuvem. Vos guio por essa nuvem, minha lembrança.

O estilo de escrita de Couto flui e é belo. Essa beleza ao ser lida equivale a contemplar um amanhecer ou um pôr-do-sol: é o cotidiano, mas cheio de mistérios. É simples mas lidando com sentimentos complexos. Cheio de silêncios que dizem muito. Há um equilíbrio entre o preso e a leveza, conduzido por personagens que poderiam ser qualquer um. A viúva de O cesto, Filipão Timóteo em A carta de Ronaldinho1, ou a matriarca de Enterro televisivo.

Interessante também é que Mia Couto consiga ir além de uma representação de sua terra natal (Moçambique), fazendo histórias sem lugar, universais. Embora ele situe o espaço em um conto e outro, como em O novo padre, a verdade é que poderiam ocorrer em qualquer país, qualquer cidade. Mais do que isso, há uma certa familiaridade, como se algumas personagens já tivessem povoado histórias da nossa cultura, como acontece com o mulherengo do conto que dá nome ao livro, O fio das missangas.

É esse conto que apresenta uma das passagens mais bonitas escritas por Couto: A vida é um colar. Eu dou o fio, as mulheres dão as missangas. São sempre tantas, as missangas… A frase poderia também se encaixar ao ofício do escritor, sendo suas histórias as missangas. No caso de Couto e sua coletânea, são tantas, e tão lindas as missangas.

Realmente apaixonante e imperdível. É sempre um prazer descobrir escritores que conseguem ir além da contação de histórias, mas usar as palavras como um pintor usaria sua tinta, fazendo do texto arte, pura e simplesmente.


  1. com a seguinte abertura, tão bela e tão verdadeira: “Uns aprendem a andar. Outros aprendem a cair. Conforme o chão de um é feito para o futuro, o do outro é rabiscado para a sobrevivência”  

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