Cinquenta Tons de Cinza (E.L. James)

A história da criação de Cinquenta Tons de Cinza (de E. L. James, cuja tradução foi lançada esta semana no Brasil) é no mínimo curiosa. Nos tempos de sucesso da saga Crepúsculocomeçaram a aparecer sites que reuniam fanfics baseadas nos livros de Stephenie Meyer. Algumas tentavam contar de outro jeito o romance entre Bella e Edward, outras iam além e usavam as personagens em histórias completamente diferentes, algumas com muito “lemon“, um termo utilizado pelo pessoal que escreve fanfic para as cenas de sexo. E entre essas ‘n’ fanfics que surgiram na época, havia uma chamada Masters of the Universe, que depois foi modificada (com Edward virando Christian e Bella virando Anastasia), publicada de modo independente, mas que então fez tanto, tanto sucesso que começou a ter o direito disputado a tapa entre editoras grandes.

E é nítido que o “passado” do livro acaba ficando bastante evidente já nas primeiras páginas, pelo menos no caso de quem já leu Crepúsculo. As semelhanças vão desde bobagens (como o fato de Christian achar que azul fica bem em Ana, assim como Edward achava sobre Bella) até questões mais importantes para o enredo (ou vão dizer que nunca ninguém achou a dependência de Bella pelo vampiro meio estranha?). Algumas vezes só pelas características já dá para saber quem são as personagens que inspiraram James (o irmão de Christian, Eliott, seria o Emmet de Crepúsculo; a amiga de Ana, Kate, seria Rosalie, etc.). O maior problema é que como a autora quando escreveu afanfic contava provavelmente com o conhecimento prévio do leitor sobre características das personagens, acabou criando um Christian e uma Anastasia bastante vazios. Ela é uma garota insegura de cabelo rebelde que está prestes a se formar e gosta de livros clássicos. Ele é um empresário milionário aos 27 anos, frio e dominador. E é basicamente isso que sabemos sobre os dois, o que chega a ser irônico se considerarmos o tanto que a autora usa do livro para descrever espaço e as roupas de suas personagens.

Mas deixando de lado o fator Crepúsculo e nos concentrando nos Cinquenta Tons de Cinza em si, começando pelo enredo, que consiste em Christian e Anastasia se conhecendo quando a garota substitui uma amiga que iria entrevistá-lo, ambos acabam se interessando um pelo outro e uns poucos dias depois já começam a maratona de sexo. Só que Christian é chegado em BDSM (Bondage, Disciplina, Sadismo e Masoquismo), e ele não quer exatamente um amorzinho e alguém para esquentar o pé à noite. Então Christian oferece um contrato de dominação e submissão para Ana, que upz, era virgem. Entre a educação sexual da moça e discussões sobre o contrato (ela só aceita as condições na metade do livro), no final das contas dá pra dizer que Cinquenta Tons de Cinza é um “pornô com historinha” da literatura.

Eu já esperava tudo isso do livro, de certa forma. Portanto, quando comecei a ler não esperava nenhuma obra de arte para ser estudada nos cursos de Letras no futuro, achava só que seria divertido. E tem horas que é, mas pelo motivo errado: é engraçado pelo absurdo de algumas situações descritas por James. Tem diálogo que é tão ridículo que você só consegue rir (li o livro em inglês, mas entre um dos mais memoráveis está Christian logo no começo falando para Anastasia “I don’t make love. I fuck… hard“). Sabe quando você vê o vídeo do Marcelinho lendo contos eróticos? O efeito é parecido. Acredito que o problema tenha sido a escolha do ponto de vista da história. A narração é feita em primeira pessoa, sob o olhar de Anastasia, que usa expressões como “minha deusa interior dançou um samba” para dizer que estava feliz pelo fato de um sujeito boa pinta como o Grey dar atenção para ela.

Isso para não falar da repetição de expressões. Fiquei tentada a contar quantas vezes ela usou “Holy (alguma coisa)”, “Inner goddess” e “Subconscious”, mas uma pessoa já fez isso então aqui vão os números, que são, respectivamente: 172, 58 e 82 vezes. Isso para não falar do número de vezes que ela nos lembra que os olhos de Christian são cinzas (oi, referência ao título) ou que ela morde os lábios. Além disso, tem um problema sério de repetir algo que foi dito um pouco antes, talvez por conta de um receio de que o leitor estivesse pulando linhas para ir direto para as cenas de sexo e assim perdendo algo dito anteriormente, não sei. Só sei que tanta repetição é chata, pura e simplesmente. Aliás, Anastasia é chata. Você quase consegue entender porque Grey quer tanto dar umas palmadas nela.

E não entrando nos méritos do BDSM (que simplesmente não é minha praia), há todo um conceito errado e distorcido na relação de Christian e Anastasia, fazendo qualquer mulher com um pingo de amor-próprio ficar de cabelo em pé. Já começa pelo clichê do bonito e rico que dá presentes absurdamente caros – eu não sou feminista nem nada do tipo, mas se você quer me irritar é vir me dizer coisas como “mulher só liga para dinheiro”, teoria que de certa forma esse livro acaba validando. Não pela conduta de Anastasia sobre o dinheiro de Christian (ela é chata até sobre isso, recusa umas primeiras edições que eu nem morta recusaria), mas em termos como protagonista (e portando, o “homem dos sonhos”) ser um sujeito assim. Não precisava ser um cara lindo e riquíssimo. Tem um filme de 2002 chamado Secretária que também explora esse tipo de relação, mas que consegue ser não só extremamente sexy, mas também surpreendentemente tocante. E o protagonista, interpretado por James Spader, é um cara comum. Um advogado, nada demais. O que quero dizer ao mencionar este filme é, principalmente, que não é o BDSM o problema, mas o modo como a relação de ambos é retratada. Tem outra frase que me tira do sério que é “Isso é amor de pica” (perdoem meu francês), mas não consigo pensar em outra coisa para definir o comportamento de Anastasia sobre Christian ao longo da história.

O problema disso é que se você  está lendo Cinquenta Tons de Cinza só pelos momentos de sexo, o livro fica completamente enfadonho. Veja bem, é simplesmente uma questão de não cumprir seu propósito: ou é engraçado (porque beira ao ridículo), ou é chato (por ser contado sob o ponto de vista de uma virgem que ficaria admirada por fazer sexo até com um playmobil). Desse modo, em tempos de internet, nada justifica que uma mulher precise ir até uma livraria comprar um livro ruim como esse para ficar excitada. Talvez seja um problema de bacharel em estudos literários, vá saber. Livro de qualidade duvidosa simplesmente não me atrai (não sei exatamente o motivo, mas a cena na mesa da biblioteca do filme Três Formas de Amar acaba de passar na minha cabeça).

Confesso que, no momento, mais do que sobre o que acontecerá nos próximos dois livros, minha curiosidade é saber como ficou a tradução que sai agora pela Intrínseca. Tenho o palpite de que a língua portuguesa melhore um pouco algumas situações que para mim foram de extrema vergonha alheia como, por exemplo, um homem cheio dos “shall” usar constantemente (olha a repetição aí de novo) o termo “baby” quando fala com Anastasia. Pelo efeito cômico da coisa, gostaria de saber até o que será feito dos “holy (alguma coisa)” da narradora também.

E se você decide ler Cinquenta Tons de Cinza pela história (ahaaaam), não consegue simplesmente se importar com uma protagonista como Anastasia, seja por suas características, seja por suas motivações. Assim, a realidade é que não sobra muita razão para ler o livro a não ser a curiosidade, aquela vontade de saber um pouco sobre o tal do “livro de sexo que todo mundo está comentando”. Se você é dos curiosos, eu ainda sou da teoria de que todo leitor acaba produzindo um livro novo a partir de um mesmo título, então o que eu achei perda de tempo pode ser bacana para outra pessoa – e por esse motivo não vou dizer que não recomendo a leitura do livro. Mas eu, que sou tão flexível sobre literatura (acho que o fato de dizer neste post que li e gostei deCrepúsculo ilustra bem isso), simplesmente não consegui entender como um livro ruim assim bate recordes de venda. Nunca li revistinhas ao estilo Sabrina e Júlia para afirmar com certeza, mas se bobear este livro de E.L. James fica no mesmo nível. Só que vem com uma capa bonita e sem o estigma que essas publicações ganharam ao longo do tempo.

(Este post foi originalmente publicado no Meia Palavra em 26 de julho de 2012)

Um comentário em “Cinquenta Tons de Cinza (E.L. James)”

  1. E como eu concordo com sua resenha, gente como esse livro pode ter feito tanto sucesso? Eu comecei, confesso, passado negro lendo fanfics, e tipo, é tudo tão igual que não vejo logica que isso tenha vendido tanto, o absurdo maior é que é vendido pra qualquer idade, pois é, o mundo está indo pro buraco mesmo colega.

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