1984

Algo que me perturbou muito durante a leitura de 1984 era a questão da manipulação da História. Lembro que passei dias pensando naquilo, querendo falar disso com alguém, como se eu tivesse um espinho de peixe na garganta. É até por causa disso que acredito que dificilmente a obra do George Orwell sairá da minha lista de favoritos de todos os tempos (mas aí já é outra história).

Então, para quem não lembra, Winston (o protagonista) trabalhava no Departamento de Arquivos do Ministério da Verdade. E talvez até mesmo por trabalhar nesse departamento, ele ainda tinha uma visão diferente sobre o mundo no qual vivia. Ele sabia que o tempo estava distorcido, tanto que no começo do livro há uma passagem na qual ele escreve no diário e se questiona se de fato está no ano de 1984. Mas o pior, o que realmente aterroriza, é o que eles fazem com as pessoas que são contra o regime político:

“People simply disappeared, always during the night. Your name was removed from the registers, every record of everything you had ever done was wiped out, your one-time existence was denied and then forgotten. You were abolished, annihilated: vaporized was the usual word.”

Ou seja, a História é manipulada de tal forma que a existência de uma pessoa é simplesmente negada e pior, esquecida. Eu não lembro como ficou o termo “vaporized” na tradução, mas o ato em si continua sempre na minha lembrança como uma das coisas mais assustadoras que já li em um livro, especialmente porque – teorias da conspiração à parte – sabemos que a História pode ser manipulada dessa forma.

Quer um bom exemplo? Hoje cedo estava lendo a Época, mais precisamente uma reportagem sobre as confusões geradas em torno do diário de Guimarães Rosa. Para quem pegou o bonde andando: em fevereiro a Revista Bravo publicou trechos do diário, o que irritou bastante as filhas do primeiro casamento do Rosa (Vilma e Agnes), visto que falam do momento que o autor já vivia com a segunda esposa (Aracy).

Eu não quero muito falar de direitos autorais, mas o que fica cada vez mais claro é que Vilma age como uma agente do Ministério da Verdade, tentando “vaporizar” Aracy a qualquer preço. Trechos da reportagem para quem ficou com preguiça de clicar no link:

Em 2007, durante a Semana Roseana, Vilma protagonizou uma cena impressionante. Saiu aplicando fitas adesivas sobre as fotos em que o pai aparecia com Aracy, em painéis no Museu Casa Guimarães Rosa, em Cordisburgo (MG), cidade natal do escritor. Nas fitas, estava escrito: “não”. Vilma tem uma explicação: “Foi um truque que eu usei. Marquei as fotos que eu queria e as que eu não queria porque o povo estava revoltado e queria destruir os painéis. Eram fotos do tempo em que Aracy era amante do meu pai e o povo mineiro não gosta disso”.

Na entrevista a ÉPOCA, Vilma se esforçou para reduzir o papel de Aracy na biografia do pai – e na História. “Ela era a secretária do meu pai no consulado. Então ajudou os judeus”, diz. “Mas era uma funcionária, não tinha poder para ajudar os judeus. Meu pai é que desempenhou o papel mais importante. Ele era o cônsul. Meu filho está escrevendo um livro sobre isso. Muitos judeus têm o passaporte assinado pelo meu pai.”

Na briga do Departamento de Arquivos de Rosa, quem perde é o leitor. Não temos acesso aos diários escritos pelo escritor enquanto vivia na Alemanha (de importância não só Literária mas também Histórica), e dia após dia publicações envolvendo o nome de Rosa são negadas se de alguma forma relacionam o nome do autor com o de Aracy.

O que me faz lembrar de uma conversa que tive com Tiago tempos atrás, quando perguntei por que ao falar de Literatura Brasileira o nome de Rosa não estava na ponta da língua dos leitores brasileiros tal como o de Machado. O palpite de Tiago é que ainda não foi produzida uma crítica boa (ou vasta) para Rosa, como acontece com Machado (o que em partes eu concordo). Mas eu tenho aqui meu palpite: preocupadas em “vaporizar” em Aracy, as filhas de Rosa estão “vaporizando” o momento mais importante da vida do pai: o de quando ele foi um escritor, e, na minha opinião, o melhor do país.

Triste e assustador.

8 comentários em “1984”

  1. Isso também foi uma das coisas que mais me assustou no livro. Lembro que quando recomendei ele pr aminha irmã, falei tanto desse ponto que também assustei a coitadinha, hehehe.
    Mas o mais assustador é pensar que pode perfeitamente ser verdade…
    E fazerem isso já é absurdo, ainda mais com um escritor como Rosa.

    =***

  2. Engraçado como uma mulher traida (isso se aplica as filhas de uma mulher traida) é capaz de se tornar amarga e sem senso para as coisas. Fico triste por não ter lido muitas coisas do G. Rosa, mas esse ano vou ler mais…

    Nossa faz tempo que eu não passo aqui, mudou até o layout né?

  3. zuleica – Vinte e tantos anos foi assim, minguados fins-de-semana para encontros pessoais. Os livros, jornais e revistas eram os dedicados amigos substitutos, dispostos a me acompanhar sem queixas à qualquer lugar. Os fins-de-semana agora estam mais extensos, estou mais disponível, mas mantenho em parte o hábito e não desejo modificá-lo. Por isso Veríssimo, para mim, é íntimo. David Coimbra, indispensável. Carnegie meu conselheiro. Lowen, Estés, Gibran, Bonder, Verne, Clark, Andrews, A. Rochais e outros são parceiros na mesa de debates que existe em meu mundo mental e emocional. Recorro a eles ao tomar decisões, em busca de inspiração, afinal “amigos assim” se pode ocupar tranqüila e serenamente. Neste espaço compartilho com você as pérolas desta convivência. Confira e opine
    kuinzytao disse:

    É Anica, precisaríamos selecionar o que é verdadeiro na história oficial.
    Uma vez ouvi no seriado “West Wing”, o pessoal dizer: Não podemos mais confiar na latitude e longitude oficiais, parece que elas também foram manipuladas. A pessoa desmoronou, era a única “verdade” universal que ainda considerava real.
    Um exemplo, Novaes diz que no Brasil a população levou um tempo até começar a se pensar como diferente de seus antecessores; primeiro se pensou como luso-brasileiros; depois, menos lusos e mais brasileiros; até se sentirem somente brasileiros. Isso ocorre só a partir da segunda metade do século 18, e não antes. Portanto não existíamos antes como Brasil. Até o início do século 19, “brasileiro” era o comerciante do pau-brasil. No entanto, a história oficial diz que somos brasileiros desde 1500. O pessoal quer uma realidade rósea, mesmo que sacrifiquemos o próprio Rosa.

  4. puis olhe…..
    num sei se concordo com esse lance de que não existe uma “crítica boa (ou vasta)” sobre o Rosa em comparação com críticas sobre o Machado….. Num tenho os dados, mas posso até conseguí-los, sobre o números de “coisas” publicadas por ano sobre o Rosa. Mas é coisa prá caralho….. Quanto à qualidade das tais “coisas” ela é tão duvidosa quanto a das publicações sobre o Machadão…..
    Acredito que a recepção do Rosa no Brasil não é tão grande quanto a do Machado por conta do status outorgado à obra dele (do Rosa)…
    [cena ilustrativa sobre o status outorgado ao Rosa]
    A) Você já leu Guimarães Rosa?
    B) Rosa é foda… É difícil, hermético….

    Entonces. Se Rosa “”””não é tão lido quanto Machado””””, acredito que seja devido à hermeticidade (não) lida na obra dele…. [não, eu não acho o Rosa hermético…]

  5. Eu acho que o problema da crítica do Guimarães bate um pouco com a qualidade. Porque pirar na batatinha sobre significados dos nomes das personagens estabelecendo uma relação com misticismo (como já cheguei a ler) eu acho bullshit.

    Nesse caso, eu sinto falta um pouco de coisa tipo “Ao Vencedor, as Batatas” (do Roberto Schwarz). E Lê, quando eu digo que o nome do Rosa não está na ponta da língua dos brasileiros, eu me refiro ao leitor comum, não nós que passamos por um curso de Letras.

    Tem gente que desconheceria Grande Sertão: Veredas se há uns (muitos) anos atrás não saísse aquela série na Globo, com a Bruna Lombardi como Diadorim.

  6. Claro Anica, concordo com vc…..
    Só quis dar uma relativizada nessa questão da qualidade das críticas….
    Mas concordo… E pirar nesse negócio do misticismo e do nome das personagens é foda mesmo…. quem dirá os quinquilhões de trabalhos sobre o espaço (aqueles que tratam o Machado como fotógrafo, manja?) nas obras do Machado…..
    Às vezes, tá, quase sempre sinto falta de trabalhos sobre a obra do Machado que tenham um viés mais estético…. E aqui peço especial atenção àqueles que adoram leituras sociais e marxistas (generalizo os conceitos de propósito) para o fato de que não estou dizendo que estas leituras não são importantes e/ou que não dão conta da obra…. Nenhuma leitura dá, deu ou dará conta de uma obra, mas o estético é tão importante quanto o social/marxista… pra mim, um esteticista da literatura, digamos assim, leituras estéticas são melhores. Mas aí o que conta é o gosto. Enfim.

    E já que o assunto é também a recepção crítica da obra do Guimarães, recomendo a todos a leitura da tese de doutorado do grande professor Paulo Astor Soethe… Ela, infelizmente, ainda não foi publicada. Portanto só está disponível no formato de tese… Ele faz uma leitura em paralelo das duas monstruosas obras “Grande Sertão: Veredas”, do Guigui, e de “A Montanha Mágica”, do alemão Thomas Mann. A leitura dele está mais preocupada com questões de (muito cuidado agora) formação do espaço ético (ethos)nas duas obras. Em resumo, é do caralho!
    Aos iteressados: Entrem no site do sistema de bibliotecas da UFPR (www.portal.ufpr.br) e procurem pelo autor: Paulo Astor Soethe. O nome da tese é: “Ethos, corpo e entorno. Sentido ético da conformação do espaço em Der Zauberberg e Grande sertão: veredas”.
    Dica dada.

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