Station Eleven (Emily St. John Mandel)

StationElevenHCUS2Apesar de todo o barulho sobre Station Eleven, eu tinha lá um certo pé atrás com o título. Futuro pós-apocalíptico? DE NOVO? Séééério? Por isso nunca engrenava muito além dos primeiros parágrafos, descrevendo uma apresentação de Rei Lear no que eu imaginava já ser esse futuro. Mas quando finalmente engatei a leitura, só pela quebra de expectativas a Emily St. John Mandel já conquistou minha confiança para seguir em frente até o fim.

Acontece que a tal da apresentação se passa no que seriam os dias de hoje, é anterior ao evento que praticamente apaga a humanidade do mapa. Um ator famoso sofre um ataque cardíaco enquanto encenava Rei Lear, é acudido por um cara obviamente meio perdido na vida (mas que naquele momento decide que quer ser paramédico) chamado Jeevan. Está seguindo tudo dentro do esperado, nada demais, mesmo que o ponto de partida não seja como dos outros livros – até que no capítulo seguinte, quando após o brinde ao ator falecido feito por membros da companhia de teatro vem esta frase:

“Of all of them there at the bar that night, the bartender was the one who survived the longest. He died three weeks later on the road out of the city.”

PAM, PAM, PAAAAAM!! (Insira aqui a imagem do “That escalated quickly“). Então que fique claro desde já: essas frases com pequenas noções das proporções assustadoras da nova realidade vivida pelas personagens é uma constante durante todo o romance. St. John Mandel poderia se demorar descrevendo todo um cenário de fim do mundo, como livros no estilo costumam fazer. Mas ela economiza nesse ponto, deixa o leitor criar uma falsa sensação de segurança, de “nem é tão ruim assim” para então chegar com um punhado de frases como essas que servem quase como uma marretada e nos colocam de novo nos eixos: nada mais é como costumava ser.

E o legal é que a autora não tem pressa. Ela larga uma bomba dessas mas então vai dando informações aos poucos (uma espécie de gripe suína com rápido período de incubação fugiu do controle), ainda apresenta algumas novas personagens para só no capítulo 6 voltar a construir o tal do futuro pós-apocalíptico onde a maior parte da história se passa. O conteúdo do capítulo 6? “Uma lista incompleta”, cheia de “no more…” e coisas que não existiriam mais em questão de poucos meses. Sim, outra marretada.

A partir desse capítulo, a narrativa deixa de seguir um tempo cronológico, vai e volta, descrevendo basicamente a vida de pessoas ligadas a Arthur, o ator que faleceu no começo. O mais engraçado é que eu tinha começado a ler imaginando o Jeevan uma espécie de Brad Pitt em World War Z, que a narrativa seria toda centralizada nele, mas passam páginas e páginas (e muitas personagens) até que o reencontremos.

O primeiro salto é de 20 anos no futuro, mostrando a Traveling Symphony: um grupo de músicos e atores que vagam pelas estradas dos Estados Unidos representando Shakespeare para os pequenos grupos de sobreviventes (tão pequenos que quase nem dá para dizer que vivem em cidades). O ponto de vista dos capítulos envolvendo a Sinfonia é de Kirsten, que estava presente no dia da apresentação do Rei Lear como uma atriz mirim interpretando uma das filhas do rei. Kirsten lembra de pouca coisa da vida antes da gripe, menos ainda do primeiro ano (“the more you remember, the more you’ve lost“) – mas tem como hábito guardar revistas que tenham matérias sobre Arthur porque, de alguma forma, a memória dele se manteve, como de uma pessoa boa e que a tratava bem.

É engraçado como com tão poucas páginas a sinfonia nos é apresentada de tal forma que ao ler uma passagem como “hell was other flutes or other people or whoever had used the last rosin or whoever missed the most rehearsals, but the truth was that the Symphony was their only home” você abre um sorriso de reconhecimento, como se já soubesse muito mais daquele grupo do que fora apresentado até então.

Aliás, o modo como a autora se apropria de uma frase de Star Trek para representar tão bem aquelas pessoas é perfeito: Survival is insufficient. Não basta só sobreviver à gripe. Isso por si só explica o sentido daquilo que eles fazem, mais ainda, da importância daquelas apresentações. A vida sem arte é só sobrevida.

A caravana principal (ilustração da revista Entertainment Weekly)

E talvez até por seguir nessa linha de que a sobrevivência é insuficiente, Station Eleven foge um pouco do que seria um livro mostrando pessoas se virando em uma nova realidade. Não vou negar, há sim muito da violência dos primeiros anos, a loucura de alguns grupos como forma de lidar com aquilo. As mortes, os medos, os dias. Mas com os saltos no tempo, de repente você vê o passado de personagens como Miranda, a criadora da HQ Station Eleven, desde o começo de sua vida de adulta na cidade grande até o momento em que recebe a ligação de Clark, amigo de Arthur, avisando que o ator morreu. Não é só sobre sobrevivência. É, antes de tudo, sobre as pessoas.

Ao falar sobre essas pessoas, retratos vão se completando a partir de diferentes pontos-de-vista. A impressão que se tem de Jeevan lá no começo para o que vemos no fim, mesmo Clark, e lógico, Arthur. Nada é definitivo, sua opinião vai mudando conforme uma nova visão se apresenta.

O bacana de trabalhar as histórias das personagens é que de certa forma, reforça uma ideia até bem óbvia do livro: não adianta todas as maravilhas da modernidade se não existem pessoas. São elas que fazem tudo funcionar, são os conhecimentos de indivíduos sobre as coisas mais básicas que sustentam nossa sociedade como ela é. O sujeito que coleta seu lixo, a pessoa que arruma os cabos de energia cortados, aquele que sabe fazer pão. São, como Clark reflete especialmente sobre viagens e comunicação, “these taken-for-granted miracles“. Colocando de um jeito bem simplório: não pensamos sobre a internet até que a conexão cai.

Considerando justamente esse aspecto, acho que minha parte favorita do livro é a do aeroporto. Porque embora o foco seja Clark, várias outras pequenas histórias aparecem, algumas chegam a ser arrepiantes. Tem algo ali que fez com que eu lembrasse do 24 Horas de Prelúdios e Noturnos, embora com menos sangue, como o 452 da Air Gradia fechado para sempre na pista ou o desfecho de um dos capítulos:

“I was in the hotel”, he said finally. “I followed your footprints in the snow.” There were tears on his face.

“Okay, ” someone said, “but why are you crying?”

“I’d thought I was the only one, ” he said.

E aí tem a existência da HQ Station Eleven, quase tão ligada às personagens quanto a existência de Arthur. Eu adorei os trechos em que Miranda ainda está criando a história,e gostava muito do apego de Kirsten pelas revistas, mas em um primeiro momento achei um tanto forçada a coincidência de logo o que seria o único antagonista da história ter contato com os quadrinhos também. Mas aí fica aquela ideia de que não há ninguém realmente mal, apenas pessoas querendo voltar para casa – como o povo que vive embaixo d’água em Station Eleven.

Arte de divulgação de Station Eleven, da editora britânica Picador

A recusa de Emily St. John Mandel em criar um “vilão” no sentido mais maniqueísta da palavra , assim como de fazer do seu romance apenas uma história de sobrevivência em um mundo pós-apocalíptico emprestam não só originalidade para Station Eleven, mas também um coração.

Em tempo: parece que sai pela Intrínseca aqui no Brasil ainda nesse primeiro semestre. E para quem tem kindle e lê em inglês, hoje (22/03/2015) o livro está custando só 2,99 dólares na Amazon. E antes que eu me esqueça, desculpa, mas esse gif é necessário. Quem ler entenderá 😉

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