Nu, de botas (Antonio Prata)

Nu-botasUma das lembranças que tenho de verão em família (pelo menos um dos últimos verões que passei com toda a família) era de nós, em um camping em Pontal do Sul, fazendo turnos para ler em voz alta algumas crônicas do livro Comédias da Vida Privada, do Luis Fernando Verissimo. Claro, a coletânea fazia um relativo sucesso na época por conta da adaptação para a tv, mas não era só isso. Havia algo nas histórias de Verissimo que encantavam não só porque nos enxergávamos ali, mas porque conseguíamos rir de nós mesmos através daqueles pequenos recortes do cotidiano.

Pensei bastante nesse livro enquanto lia Nu, de botas de Antonio Prata. Sei que em uma primeira observação, parece que só encontramos de semelhança entre um e outro o fato de ser uma coleção de crônicas cujo tom predominante é o humor. Mas não acredito que seja só isso. Tal como Verissimo, Prata parece ser um daqueles casos de pessoas que conseguem transformar experiências extremamente pessoais em algo universal. Não acho que isso seja característica de qualquer cronista – alguns conseguem agradar com seus textos, mas vem lá com o carimbo do tempo: passou uma semana, ele já causará um outro efeito no leitor. Mas no caso desses dois cronistas consigo imaginar gerações e gerações de famílias em campings lendo histórias e dando risadas.

E acho que o que o melhor argumento que posso usar sobre essa questão da sobrevivência ao tempo (ou pelo menos ao tempo de vida do leitor), é que ao escolher falar da infância, Prata situa suas histórias em um momento específico, os anos 80. TV Telefunken, chamar aqueles adesivos de teto de Starfix, brinquedos e situações que só parecem possíveis dentro de um espaço de tempo. Há um parágrafo onde o narrador descreve a disposição das crianças no carro que ilustra bem esse recorte do tempo:

Minha irmã ia colada à janela da esquerda, minha meia-irmã à da direita, e eu ia deitado no banco de trás, com as pernas esticadas por cima do encosto e a cabeça pendendo entre os bancos da frente, próxima ao freio de mão. Hoje em dia, se a polícia para um carro e flagra uma criança nessa posição, o motorista deve perder a carteira, talvez até a guarda dos filhos, mas estávamos na primeira metade da década de 80: não se usava sinto de segurança nem protetor solar, pessoas não andavam por aí com garrafinhas d’água, como se fosse o elixir da vida eterna, fazíamos cinzeiros de argila para os pais nas aulas de artes e o colesterol era apenas uma vaga lembrança de gente paranoica, como a CIA ou a KGB, de modo que eu seguia feliz e contente, estrada acima, entretido com as árvores passando lá fora, de cabeça para baixo.

E mesmo assim, com o narrador sendo tão preciso sobre o tempo em que se passa sua história, ouvi muitos e muitos elogios de pessoas que são já de outra geração, o pessoal que foi criança nos anos 90. Isso mostra que apesar de falar alto para quem viveu aquele período, não importa se ele fala de Spectroman – uma série que pessoas mais novas não fazem ideia do que se trata – o que acaba seduzindo mesmo o leitor é o entorno, a situação contida naquele momento em que o garoto tenta assistir Spectroman na casa do vizinho. Você pode ter sido criança nos anos 90, eu fui nos anos 80. O que não muda: nós fomos crianças.

E a opção de contar histórias de infância com o olhar de um adulto causa um efeito hilário. Se você convive com crianças sabe que elas são dadas a esses momentos em que fazem coisas completamente absurdas, e não tem como deixar de se perguntar “O que diabos ela estava pensando para fazer isso?”. Um Prata adulto entra na cabeça de um moleque de 3 anos para explicar o que faz uma criança se esconder num canto durante um dia todo, ou o que faz uma criança mais ou menos da mesma idade achar que vestindo um monte de roupa conseguirá disfarçar o fato de ter feito cocô nas calças. Falando assim eu sei que tiro toda a graça da coisa (é meu poder mutante, não sei recontar coisas engraçadas, desculpe), mas confie: é uma risada atrás de outra.

E isso porque você se vê ali. Ou ainda, vê pessoas que conhece ali. Dá para dizer que as crônicas são organizadas de modo cronológico, acompanhando o crescimento do narrador, dos 3 anos descobrindo os tesouros ocultos embaixo do taco do piso até o momento em que descobre o amor – ou ensaia uma descoberta, digamos assim. E história após história o leitor consegue se transferir para lá, senão como o narrador, pelo menos como o amigo do narrador – pensei em conversas com os amigos sentada no meio-fio, brincando de fazer represa depois de um dia de chuva. De pequenas aventuras que ganhavam proporções épicas porque ainda tínhamos a capacidade de nos surpreender e de acreditar em coisas mágicas. A delícia de Nu, de botas é justamente resgatar sentimentos que como adultos não podemos mais ter.

E nesse processo de ver os acontecimentos de infância com o olhar de adulto, como leitor você acaba também questionando o seu próprio modo de lidar com crianças. Como quando a mãe tenta convencer o filho de aparecer em uma festinha que ele não queria ir dizendo que o lugar estaria cheio de crianças da idade dele, ao que o narrador comenta:

Céus, como podia uma pessoa tão inteligente não entender que poucas situações me apavoravam mais do que a ameaça de chegar a algum lugar novo “cheio de crianças da minha idade”?

E então segue a explicação para o horror infantil ao ambiente que para nós adultos parece o ideal (muitas crianças da mesma idade para brincar), que tenho certeza que bateria com as lembranças de muitas pessoas – talvez principalmente as mais tímidas, mas mesmo assim, não tem como não se reconhecer no medo de ser o estranho chegando num lugar onde todo mundo já se conhece. Somos assim até hoje, não?

Sabe quando descrevem alguns filmes como feel-good? Acho que é como classificaria esse livro. Eu estava mal aqui em casa, cheia de neuras do último trimestre de gravidez e ao mesmo tempo cuidando do Arthur doente, e aí comecei a ler o livro e fiquei bem, de verdade. Ria muito, ria tanto que o Arthur ria comigo sem entender o porquê. Na realidade, me senti tão bem que resolvi adotá-lo como novo livro para dar de presente para as pessoas, até porque o único jeito de errar dando Nu, de botas de presente seria se a pessoa já tivesse lido.

(Aliás, deixando registrado aqui o agradecimento ao Tuca, que recomendou o livro logo que saiu pela Companhia das Letras em outubro do ano passado. Beijo, Tuca! )

2 comentários em “Nu, de botas (Antonio Prata)”

  1. Um livro leve e gostoso, realmente não temos como não recuperar algumas lembranças nossas, sendo algumas francamente embaraçosas, ao ler as lembranças de Mario Prata, também me ajudou o fato de ter crescido numa vilinha, no meu caso nos anos sessenta,
    , Anica creio que o livro funciona para quem é uma ou duas décadas mais velho também.

    1. Então, Ary, é bem como eu disse: apesar de fazer um recorte bem preciso do tempo (marcando os anos 80), é um livro que funciona com qualquer geração. Todos nós acabamos nos reconhecendo naquelas situações, por serem típicas da infância: independente de hoje em dia brincarem com ipads dentro de seus apartamentos, a vergonha do cocô que acaba escapulindo, o horror de ser a “criança nova”, etc. – são todos eventos pelos quais passamos ou conhecemos alguém bem próximo que passou. Por isso o livro é tão gostoso, e acho que vai continuar gostoso por muitos e muitos anos, para outras gerações diferentes até dos nascidos em 90, 00, 10… =D

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