As personagens que somos

Não sei se você conhece o tumblr “Eu te dedico“. A ideia é de colocar uma imagem de uma dedicatória em um livro, e contar a história dessa dedicatória. Hoje cedo dei de cara com uma imagem de Apanhador no Campo de Centeio, com o seguinte texto:

Se alguém me perguntasse hoje
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qual o livro mais legal que eu já li,
eu com certeza diria ser este.
Porque há uma pérola nele, uma
metáfora forte, pura e bela, o
apanhador que protege a inocência,
impedindo-a de despencar no abismo.

E também tem a Phoebe.
Você é a minha Phoebe.

(…)

Ela conta: Meu namorado me presenteou, creio não só por ser um bom livro, mas também por ele ter se identificado muito com o personagem principal; ciente do meu amor, não teve dúvidas de que eu gostaria. Ao primeiro parágrafo lido, o identifico como Holden. Espero que com o decorrer da leitura consiga me encontrar na sua Phoebe.

A dedicatória é linda, senti inveja automática pela garota, confesso. Porém, o texto fez com que eu lembrasse de um assunto que tenho pensado já há algum tempo, o de como relacionamos nós mesmos e certas pessoas a determinados personagens de livros que lemos. É um negócio interessante, porque essa construção de imagem varia muito de pessoa para pessoa, e na maior parte das vezes o que você enxerga em alguém nada tem a ver com a imagem que a pessoa faz dela mesma. Em uma das leituras de tarot que eu fazia, lembro que existia um trio de cartas que representava, respectivamente, como a pessoa se via, como as outras pessoas a viam e como ela realmente era. Como se todos nós fôssemos desdobramentos de três histórias diferentes, três personagens que circulam juntos por aí. Continue lendo “As personagens que somos”

Retrato de um assassino (Patricia D. Cornwell)

Poucos criminosos mexeram tanto com o imaginário popular quando Jack, o Estripador. Por conta do fato de que sua identidade nunca foi descoberta, coube à ficção tentar desvendar os crimes que ocorreram em Londres no final da década de 1880. De romances até HQs (vide o caso de Do Inferno, de Alan Moore), com uma passada óbvia pelo Cinema, histórias e mais histórias foram contadas, baseando-se em diversas teorias a respeito da identidade do famoso serial killer. Um médico influente, um membro da realeza britânica. Muitos foram apontados como suspeitos, mas considerando o que era o trabalho de investigação naqueles tempos, a verdade é que fica difícil sair do campo das teorias de conspiração. Pelo menos até recentemente.

Há 10 anos a autora de best-sellers policiais Patricia Cornwell resolveu investigar o caso aplicando a metodologia moderna, o que inclui entre vários detalhes a análise de amostras de DNA e digitais. E a partir disso ela afirma categoricamente que sim, ela sabe a identidade de Jack, o Estripador. O livro Retrato de um assassino busca mostrar o que foi que ela descobriu com suas investigações, justificando porque seu suspeito, no final das contas, é o Estripador (e também porque isso foi mantido em segredo até os dias de hoje). Continue lendo “Retrato de um assassino (Patricia D. Cornwell)”

John Morre no Final (John Dies at the End)

Se tem uma palavra que pode definir o filme John Dies at the End ela é: ESTRANHO. Assim, com letras maiúsculas, itálico e negrito, para já ir logo avisando que se você tem problemas com suspensão de descrença, dá meia volta que esse não é para você. Digamos que em certo momento você verá um cachorro dirigindo um carro e isso será razoável perto do que você já viu até aquele momento.

Dito isso, vamos agora ao trabalhos: John Dies at the End é uma adaptação do livro de David Wong, pseudônimo de Jason Pargin, um dos editores do site Cracked. Acho que é uma informação relevante para lembrar que embora o gênero principal do filme seja sci-fi (viagens no tempo, para outras dimensões, etc), ainda assim não dá para negar que há muito de humor, inclusive gerado pelo óbvio clima nonsense da história.

Depois de um breve prólogo, conhecemos David Wong, um carinha aparentemente bem normal que marca um encontro com um repórter para dar a sua versão dos fatos envolvendo a morte de vários jovens que estavam presentes em uma festa. Logo alguns elementos são adicionados, como o Shoyu – uma espécie de droga que faz com que quem a utiliza consiga fazer coisas inimagináveis como saber o que outra pessoa sonhou e ver o futuro, por exemplo. Ficamos sabendo também que o tal do Shoyu é na verdade uma forma de uma raça alienígena (ou algo que o valha) dominar nosso mundo, e acaba que David e John são as únicas pessoas que poderão salvar a humanidade (eu avisei que o filme era estranho).

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Dark Places (Gillian Flynn)

Considerando que Garota Exemplar foi um dos livros mais bacanas que li agora em 2013, é natural a curiosidade sobre os outros romances já publicados pela escritora Gillian Flynn. Aquela coisa: alguém que acertou tanto em um, com certeza tem mais coisa bacana publicada, certo? Mas aí comecei a lembrar da maldição da Intrínseca que eu e a Dani comentamos no meu post sobre O Teorema Katherine: a editora lançava um livro que era um total sucesso aqui no Brasil, mas a escolha seguinte era sempre fraquinha e por isso mesmo um tanto decepcionante e, por coincidência, quase sempre trabalhos anteriores ao de sucesso (exemplos: A culpa é das estrelas seguido de O Teorema Katherine, A visita cruel do tempo seguido de O Torreão, Um Dia seguido de Resposta Certa, A menina que roubava livros seguido de Eu sou o mensageiro). Então fica aqui minha sugestão para a Intrínseca: ó, vai sem medo em Dark Places. MESMO. Só dessa vez faz o material promocional sem spoilers, ok? Ok.

Então. Eu não sei se já aconteceu com você de gostar muito de um autor, e aí você vai atrás de outro livro dele e quando lê ou tem a sensação de que aquilo não tem nada a ver com o cara (sabe, o estilo, a voz, nada está ali) ou é tão a ver que bem, parece só uma cópia/continuação do que ele já tinha escrito antes. É um terreno perigoso, no final das contas: como inovar sem perder o mojo? É engraçado que ao mesmo tempo que queremos algo familiar, queremos o novo. Sim, somos leitores exigentes e queremos o impossível. E é por isso que é sempre bom ter a surpresa de encontrar quem consegue fazer um ótimo malabarismo com essa nossa vontade, como é o caso de Gillian Flynn. Embora Dark Places tenha sido publicado anteriormente ao Garota Exemplar, você consegue enxergar as semelhanças, aquele tom que indica que está lendo algo da Flynn, ao mesmo tempo que entra em um novo terreno para ser explorado.

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Miss Peregrine’s Home for Peculiar Children (Ransom Riggs)

Eu não lembro bem como foi que encontrei Miss Peregrine’s Home for Peculiar Children pela primeira vez. Só sei que a capa chamou minha atenção (uma foto antiga, em preto e branco, de uma menininha cujos pés não tocam o chão) e que achei o título interessante. Julgando a sinopse (falando de orfanato abandonado e afins) e a imagem da garotinha da capa, pensei “Opa, é horror, vamos conferir”. Aí comecei a leitura e para mim pareceu algo meio The Princess Bride meets A Vida é Bela, com o avô do protagonista Jacob contando histórias sobre a ilha em que ele passou uma parte da vida com outras crianças como ele – que tinham habilidades extraordinárias. A sensação que fica é de que o livro será uma doce e divertida história sobre como o avô maquiou os horrores da Segunda Guerra Mundial com relatos sobre pessoas extraordinárias (judeus?) que precisavam se esconder em um orfanato para fugir dos monstros (nazistas?).

Bem, a questão é que Ransom Riggs tem uma carta na manga: ele te leva a pensar que o livro vai tomar um rumo e aí surpreende. E isso não é apenas uma vez só (e é óbvio que eu não vou ficar revelando aqui as surpresas). A leitura de Miss Peregrine’s Home for Peculiar Children fica parecendo um pouco com um passeio em um trem fantasma, onde você nunca sabe ao certo o que virá a seguir. Eu disse que achava que seria uma história de horror, certo? É horror.  Mas também fantasia. E aventura. Daquelas obras que enquanto você passa por alguns parágrafos fica só pensando: “Caramba, digam que vão filmar isso aqui!”1

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  1. A Fox já comprou os direitos de filmagem do filme 

Hotel da Morte (The Innkeepers)

Hotel da Morte. Hoteeeeel da Morte. Mais um título que constará na Grande Lista Valinor de Traduções Bizarras. Eu fico aqui lembrando dos tempos do VHS, quando ainda era obrigada a assistir os trailers dos filmes, se for puxar de memória, acho que os da Playarte eram sempre meio tosquinhos. Era Playarte que sempre tinha propaganda daquela pousada em Paraty? Não sei. O fato é que o filme chegou direto em DVD aqui no Brasil, pela Playarte, suponho então que ela seja a responsável pela tradução ruim do título. Tão ruim que só por acaso me dei conta que o filme acabou de chegar no catálogo do Netflix nacional, então fica o aviso para o caso de você também ter achado que The Innkeepers não ter dado as caras por essas bandas: calma, ele chegou. É só o título que ficou ruim.

Enfim, sobre Hotel da Morte (gakjhslalwkdq!). Eu sei que vai parecer estranho falando de filme de terror, mas o fato é que mesmo que tenha poucas cenas assustadoras (a coisa fica assustadora mesmo só na última meia hora), ainda assim eu gostei bastante. Tem lá seus furos, mas também tem alguns detalhes que amarram a história de um modo que não costuma aparecer em filmes do gênero, que convenhamos, costumam ser bastante óbvios sobre todo o enredo e ganham sua força só nos sustos mesmo. Então uma história que poderia ser mais uma de lugar assombrado como tantas outras que já saíram por aí, consegue ser original – o que é bem importante se formos considerar que o horror norte-americano nos últimos anos quase que sobrevive só a base de remakes de filmes estrangeiros e continuações.

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Deixa ela entrar (John Ajvide Lindqvist)

Meu primeiro contato com o romance Deixa ela entrar, do sueco John Ajvide Lindqvist, foi através da adaptação para o cinema de 2008, chamada Låt den rätte komma in. O responsável pelo roteiro do filme foi o próprio Lindqvist, então rapidamente imaginamos que há uma grande aproximação entre o filme e o livro – o que para mim ficou evidente ainda no mesmo ano, quando li a tradução para o inglês da obra (chamada Let the right one in). E desde então muita água rolou, o filme ganhou uma versão americana (chamada de Deixe-me entrar, que eu ainda não vi), e agora a Globo Livros lançou uma tradução em português direto do sueco, com o título Deixa ela entrar, que tive a oportunidade de ler recentemente. Aviso de antemão que como eu não sei lhufas de sueco, qualquer comentário a seguir sobre a tradução é baseado em teorias e, bem, na lembrança da primeira leitura em inglês.

Até por causa da relativa demora para o livro chegar por aqui é importante contextualizar a obra, para compreender o porquê de ela conquistar tanta gente. A estreia do filme em 2008 (o livro é de 2004) coincidiu com o auge da febre Crepúsculo, que trazia o conceito de vampiros para adolescentes. A franquia de Stephenie Meyer não é de maneira alguma precursora, mas é certamente uma das maiores divulgadoras de uma fórmula que foi repetida exaustivamente ao longo dos anos (na realidade, até hoje), sempre trazendo o amor impossível entre um ser sobrenatural (vampiro, lobisomem, fantasma, boitatá, ou o que for) com um humano. E Deixa ela entrar tem essa fórmula, porém de uma forma muito, muito diferente do que esperamos em livros do tipo. A obra de Lindqvist acabou se tornando um anti-Crepúsculo, ou ainda, um Crepúsculo para quem não suporta uma dose muito alta de sacarina e prefere nossa realidade, muito mais dark. Continue lendo “Deixa ela entrar (John Ajvide Lindqvist)”