O Psicopata Americano (Bret Easton Ellis)

O_psicopata_americanoPerto do final do romance O Psicopata Americano, de Bret Easton Ellis, temos um capítulo chamado “Fim da década de 1980″. A verdade é que este bem que podia ser um título para a obra de Ellis, já que resume tão bem o espírito geral do que se lê ao longo das quase 500 páginas, em uma narrativa sob o ponto de vista de Patrick Bateman. Bateman é o “psicopata” da história, mas inicialmente aparece apenas como mais um yuppie (termo usado para se referir a jovens adultos de classe média ou alta), com uma rotina tão próxima do esteriótipo que chega quase a ser um clichê. Ele se preocupa com a marca das roupas que usa, repara nas que seus colegas de trabalho usam, quer frequentar os lugares da moda, é mimado, egoísta e completamente desprovido de grandes sentimentos pelas pessoas próximas. É quando ele começa a falar em cabeças decepadas no congelador que o leitor passa a perceber que cheirar cocaína não é o único ato criminoso que Bateman comete.

Eu poderia seguir comentando sobre os assassinatos, mas durante a leitura resolvi tomar outro caminho. Explico: à medida que Bateman vai perdendo o controle sobre suas vontades e ficando cada vez mais violento, a narrativa fica pesadíssima. Torturas envolvendo choque elétrico, uma ratazana sendo colocada dentro da vagina de uma mulher, pedaços de outra sendo cozidos, etc. E acreditem, eu estou sendo breve e poupando os detalhes. Tem que ter estômago mesmo, e quem fala aqui é uma fã de filmes slashers, para ter ideia. Mas apesar de toda a piração do narrador ao descrever seus atos, não consigo deixar de ficar com uma certa pulga atrás da orelha sobre se os crimes realmente aconteceram, ou se ele estava apenas imaginando coisas. Algumas passagens colocam isso em dúvida, e por isso que foquei em outro aspecto, o de ninguém prestar atenção em ninguém.

E foi nisso que esse livro de Ellis me conquistou totalmente. Porque sim, é um retrato dos anos 80, como fica claro nas inúmeras idas de Bateman à locadora, ou mesmo nos geniais capítulos em que ele abandona o fluxo de consciência para escrever como um crítico sobre figuras da música pop da década, como Genesis ou Whitney Houston. São outros tempos, mas parece que pouco muda. Se representasse o grupo de amigos de Bateman hoje em dia, seria com várias pessoas em uma mesa de bar mexendo em seus smartphones de última geração, mas as pessoas ainda assim seriam as mesmas, com o mesmo modo de agir. Todos falam sobre tudo, mas ninguém ouve absolutamente nada.

A maior prova disso é que Bateman mais de uma vez diz em voz alta com todas as letras que é um psicopata, mas as pessoas não acreditam nele. De certa forma, lembrei de uma frase da personagem Don Drapper, da série Mad Men: “As pessoas te dizem quem elas são, mas nós ignoramos porque queremos que elas sejam quem nós queremos que elas sejam”. E com isso estão todos condenados à solidão, mesmo acompanhados. O próprio narrador não foge à regra, como se observa nas descrições dos encontros com os amigos (e mesmo com Evelyn ou a amante Courtney). O interlocutor está falando sobre a vida, o universo e tudo o mais, e ele fica pensando se conseguirá chegar em casa a tempo de assistir o David Letterman.

Há ainda a óbvia crítica à sociedade de consumo. Chega uma hora que já ficamos até acostumados, mas absolutamente tudo que Bateman vê é reconhecido por sua marca. Ao descrever uma rotina simples envolvendo uma prática de exercícios e um café da manhã, ele vai nomeando as marcas de tudo que compra, desde o produto para pele até os pratos que utiliza. E a observação se prolonga para as pessoas com quem convive, desde a secretária até os colegas de trabalho. Dos sapatos até o casaco, tudo pertence a alguma marca de renome. E o círculo de convívio de Bateman não parece fugir à regra, já que regam a história com diálogos sobre marcas de água mineral ou como é o modo mais adequado de se utilizar um colete. É como se ninguém quisesse falar sobre sentimentos, só sobre coisas.

E essa situação é tão comum até mesmo nos dias de hoje, tão ligada ao fato de que nossa sociedade cada vez mais converge para o “eu”, numa insana tentativa de formar uma sociedade de egoístas, que é por isso que eu acho que o livro merece uma leitura mesmo 21 anos após ter sido publicado. Ele permanece atual, vivo, mexendo com o leitor não só pela violência gratuita dos atos de Bateman, mas também por ser tão verdadeiro no modo como nos comportamos que chega a ser cruel.

Em tempo, dois comentários:

  • O livro foi lançado em setembro do ano passado pela L&PM e uma parceria que até então eu desconhecia com a editora Rocco. A Nanni da L&PM explicou como funciona: “são títulos cujos direitos de publicação pertencem à Rocco, que, por sua vez, nos concede a permissão para publicação em formato pocket. Tudo começou com alguns títulos de Agatha Christie e Simenon, que depois de um tempo acabaram sendo comprados pela L&PM e hoje são exclusividade nossa. Os livros que ainda fazem parte da parceria com a Rocco são estes.
  • O livro ganhou uma adaptação para o cinema em 2000, com Christian Bale no papel de Patrick Bateman. Eu acho engraçado que o humor que eu consegui captar na versão cinematográfica eu não achei assim tão fácil na obra de Ellis. Fica como amostra do tal humor uma cena do filme, com Bateman e seus amigos discutindo sobre cartões de visita.

Atualização de 22/05/2013: Ano passado comecei a seguir o Bret Easton Ellis no twitter. Descobri que é o cara mais azedo e amargo do mundo, o que ficou comprovado com a babaquice dele sobre o David Foster Wallace e a seleção de piores tweets dele em 2012 feita pelo Flavorwire. É óbvio que não vou deixar esse tipo de coisa afetar o julgamento que faço da obra dele (estou com outros livros dele para ler aqui), mas o evento serviu pelo menos para lembrar que um sujeito pode escrever um livro muito bom mas ainda assim ser um babaca completo. E nem venha me dizer que isso é óbvio, porque eu aposto que quando você termina de ler um livro muito foda você logo imagina “Uou, imagina uma conversa com esse cara!” ou, “Queria que ele fosse meu amigo” << digo isso sempre que leio algo do Arthur Miller. Benzadeus que ele morreu antes da popularização do twitter.

(Post originalmente publicado em 20 de Março de 2012 no Meia Palavra)

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