As aventuras de Pi (Yann Martel)

AS_AVENTURAS_DE_PI_1355401498PComo comentei no post em que falo sobre o filme As aventuras de Pi, estava com uma birra gigante com essa história por conta de todo o bafafá sobre o autor (Yann Martel) ter plagiado um livro de Moacyr Scliar chamado Max e os Felinos. E como ficou bastante claro para quem me ouviu falar sobre a adaptação, a birra acabou porque me encantei completamente com a história, o que acabou fazendo com que o livro “furasse a fila” das leituras pendentes. Neste post falarei sobre o livro, sobre o plágio e sobre como minha visão do filme mudou após ler a obra – mas vamos por partes.

1. O filme após a leitura

Eu adorei o filme. É meu queridinho para o Oscar, por mais que eu saiba que ele não tenha café no bule para ser o grande ganhador da noite. E como andei sendo bem ranzinza com algumas adaptações (As vantagens de ser invisível e O lado bom da vida, mais especificamente), achei que cabiam alguns comentários, até para deixar claro que eu não sou aquele tipo de bocó que não consegue perceber que é óbvio que adaptações são diferentes dos livros.

A questão é: tomo o trabalho de Ang Lee com As aventuras de Pi como modelo de um bom roteiro adaptado. Coisas foram deixadas de lado? Claro. Coisas foram alteradas? Evidente. Mas a essência da obra foi captada, o que a fez dela algo especial (ou seja, uma história que merecia ser contada), está lá. 

E acredito que os “cortes” foram até bem escolhidos. Há no filme um tom quase onírico (que não está presente no livro porque Martel não se prolonga em descrições) – cenas que poderiam muito bem corroborar a ideia de que Pi delirou e aquela história de tigre, zebra e outros bichos não era real. Martel, por outro lado, insiste a todo momento em trazer o leitor para a realidade descrevendo os tormentos do protagonista – ao ponto de descrever um momento em que ele come as fezes de Richard Parker por estar extremamente faminto.

Aí é que está: são caminhos diferentes, quase opostos, mas a adaptação não significa em nada perder os encantos do texto. Livro é sempre melhor? Tá aí uma exceção à regra. Não vou dizer que a versão cinematográfica é melhor, mas certamente conseguiu se manter no mesmo nível da obra.

Close enough

2. O plágio de Moacyr Scliar

Eu já compartilhei o video com o depoimento do Scliar aqui no blog, mas segue novamente o link para quem quiser ver. Minha primeira consideração sobre o assunto é que as pessoas deveriam se informar mais antes de compartilhar protestos no Facebook. Em uma imagem que acusa Martel de plágio, tem até um sujeito que comentou algo como “Indiano safado!” – sendo que Martel nasceu na Espanha e viveu no Canadá. Esse tipo de comentário já dá bem uma noção do tipo de pessoa que clica no “compartilhar”, não?

Ok, continuando: eu tenho bastante claro na minha cabeça que sem ler Max e os Felinos eu não posso dizer nada com certeza: preciso reconhecer trechos copiados para dizer “Sim, é plágio”. Porque copiar um elemento de uma história não é plágio. Explico: alguém por aí acusa Shakespeare de ser plagiador? Não, né? O engraçado é que poucos enredos de Shakespeare são “originais”. Tome como exemplo Romeu e Julieta, que tem muitos elementos de uma história escrita por um italiano chamado Luigi da Porto. Hamlet teria supostamente vindo de Saxo Gramaticus, A comédia dos erros de Plauto e por aí vai.

E olha, se elementos pudessem ser plagiados, as possibilidades de criação passariam a ser limitadas. A primeira pessoa a escrever um whodunit seria a única que poderia utilizar-se dessa fórmula. Machadão teria plagiado Shakespeare com seu Bentinho ciumento? E por aí seguimos. As questões que devem ser levantadas são: ambos contaram a MESMA história colocando um garoto num bote com um felino? Discutiram as mesmas ideias? Há ações e falas idênticas nos dois textos? Sim para qualquer uma dessas perguntas significa que sim, houve plágio. Caso contrário, Martel aproveitou-se de uma ideia para contar uma história. Mau caráter ou não, ele não é o primeiro e nem será o último a fazer isso. Vide a quantidade de romances com “homenagens” sem qualquer referência que estão surgindo por aí.

De qualquer forma, essa é minha opinião sobre o assunto. O que ouvi do meu irmão (que estuda direitos autorais), é que não se pode “plagiar uma ideia” – e se lerem o post do Luiz Schwarcz no Blog da Companhia verão que os advogados consultados por ele falaram a mesma coisa. Se essa polêmica serve de algo (além de encher o fiofó da Nova Fronteira e da L&PM de dinheiro com a divulgação gratuita dos livros em questão) é justamente para abrir espaço para a discussão sobre qual é o limite entre inspiração e plágio.

Mas insisto: ainda não li Max e os Felinos, pretendo voltar com respostas para essa pergunta em breve. De qualquer forma, para Scliar ter até cogitado processar Martel por plágio, talvez as semelhanças não se resumam à ideia do garoto com um felino num bote salva-vidas. De qualquer forma, o que quero dizer com tudo isso é: parem de replicar acusação no Facebook, vão ler os livros e tirem vocês mesmos suas próprias considerações.

Mamylos!

3. O livro (ufa, finalmente)

A essa altura acho que a maior parte das pessoas já está familiarizada com o enredo de As aventuras de Pi: um garoto sobrevive em um barco salva-vidas tendo um tigre como companhia. É complicado resumir o livro dessa forma, considerando que são 120 páginas até chegarmos ao naufrágio. A primeira parte do livro abre com um relato do autor, contando das dificuldades que teve para escrever seu segundo livro, e de como começou a escrevê-lo quando conheceu Pi Patel, sobrevivente de um naufrágio. Nesta introdução há um agradecimento a Moacyr Scliar, vale ressaltar.

A partir daí, a primeira parte intercala depoimentos de Pi sobre sua infância e juventude em Pondicherry (narrados em primeira pessoa, sob o ponto de vista de Pi) e observações do escritor-personagem que foi visitar o sobrevivente para ouvir seu relato (narrados em primeira pessoa, com o ponto de vista do autor). É engraçado dizer isso, mas esta primeira parte parece ser o que cativa o leitor, amarra sua atenção para o que virá a seguir. A história de Pi (e o modo como ele a conta), é muito gostosa, e quase dá a sensação de que você está na sala ao lado do escritor ouvindo Pi.

É a primeira parte que traz a mensagem de tolerância religiosa, já que Pi mostra como podia ser cristão, hindu e muçulmano ao mesmo tempo. Há, ao mesmo tempo, o conflito entre a ciência e a fé, como que uma preparação para o grande “teste” da vida da personagem, que virá na segunda parte.

Nela, somos arremessados junto com Pi ao mar. É o trecho mais longo do livro, e o mais sofrido. Desafio você a ler essa parte e não pensar em tomar um delicioso copo de água gelada. Da relação de Pi com Richard Parker, do modo como aos poucos ele consegue se impor e ser o senhor do barco, acho que o que mais chama a atenção é a linha que traça os limites de nossa civilidade. O alimento como chave para o que pode nos igualar ao animais em irracionalidade, como fica bem claro no trecho:

Se acabei ficando tão pouco seletivo com relação ao que eu comia, não foi apenas por causa da fome assustadora; foi também por simples pressa. Às vezes, não dava nem para examinar o que eu tinha ali, à minha frente. Ou enfiava aquilo na boca imediatamente, ou perdia a comida para Richard Parker, que já estava agitando as patas, pisoteando o fundo do bote e bufando de impaciência nas bordas do seu território. A indicação mais incontestável do ponto em que eu tinha chegado foi o dia em que percebi, com um aperto no coração, que estava comendo como um bicho; que o jeito como eu devorava as coisas freneticamente, fazendo o maior barulho e sem mastigar, era exatamente como Richard Parker comia.

Há uma série de divagações de Pi que fazem do livro todo um convite à reflexão. Não é apenas uma leitura de uma “aventura” vivida por um garoto. O romance vai além disso, o que dá para perceber até pelo modo como ele vai se remodelando, mudando – como depois de todo o sufoco da segunda parte chegamos à terceira (e última).

Aqui, Pi conta sua história para dois japoneses que investigam o naufrágio. Essa parte quase inteira é apenas a transcrição dos diálogos entre as três personagens. É o momento em que o autor semeia a dúvida: o que Pi contou até então realmente aconteceu? Ou foi apenas a forma que o garoto encontrou para lidar com uma realidade ainda mais horrível? Se o leitor resolver tomar a segunda opção como a correta, o que acabou de ser lido se transforma e pede uma releitura – especialmente para chegar à resposta de qual o motivo da escolha de Richard Parker como avatar de Pi.

Para terminar, só para dar aquela mão para quem quiser procurar o livro, ele foi publicado no Brasil primeiro pela Rocco (em 2004), com a tradução literal do título, A Vida de Pi. Depois, em 2011, saiu pela Nova Fronteira numa edição com uma capa para lá de feia também como A Vida de Pi. A mesma Nova Fronteira agora em 2012 resolveu aproveitar o lançamento do filme, lançando uma nova edição que sai com o título igual ao do filme no Brasil, As aventuras de Pi (e sim, capa do pôster do filme). Não preciso nem dizer que o mais provável é que você encontre a última opção com um preço mais baixo por aí.

Richard Parker <3

4 comentários em “As aventuras de Pi (Yann Martel)”

  1. Anica, só esclarecendo uma coisa: pelo o que entendi ao ver o vídeo do Scliar, o Martel só incluiu o agradecimento depois que a polêmica já estava bem difundida, não? Ou entendi errado?

    E como sempre, gosto muito da maneira como você articula suas opiniões.

    🙂

    1. Eu não tenho fonte para confirmar, mas acho que foi só depois da polêmica, sim. O que li por aí é que no começo ele foi bem tosco com o modo como lidou com isso, aliás. Mas é um pouco estranho, sabe? Porque a nota do autor (onde tem o agradecimento ao Scliar) parece que é parte do romance, pelo menos eu fiquei com esta sensação, considerando que na parte um há um escritor que descreve seu encontro com Pi. Vou procurar mais informação sobre isso e qualquer coisa edito o post =D

      E obrigada pelo elogio ;D

  2. Anica sua linda, obrigada por ser uma leitora sensata que propaga a ideia desse não-compartilhamento de absurdos distribuídos nas redes sociais. Eu não tenho interesse no livro do Martel – a história em si não me atraiu e do Scliar, só pretendo ler ainda esse ano “A Mulher que Escreveu a Bíblia”. Mas só o esclarecimento da coisa já basta – e muito!
    Abraços.

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