A idade dos milagres (Karen Thompson Walker)

A_IDADE_DOS_MILAGRES_1342812647PEu não sei bem se a culpa é exatamente de Hollywood, mas fico com a sensação de que toda vez que temos em mãos uma história que é situada em um cenário completamente diferente do que temos como nosso “normal”, na maior parte das vezes esse mesmo cenário é apenas isso – um entre tantos elementos da narrativa. É mais ou menos assim: algo TEM que acontecer, caso contrário, não vale a pena ler a história. Então temos protagonistas que partem em busca de um modo do evitar a catástrofe global, ou aqueles que simplesmente já estão habituados com a nova realidade e portanto enfrentam qualquer outro conflito dentro de novas condições. Mas você pode contar nos dedos os livros como A idade dos milagres, de Karen Thompson Walker, que parecem não querer cair na armadilha da ação pela ação e, com isso, conseguem trazer uma história que poderá agradar até aqueles que não são muito fãs de ficção científica.

A protagonista da história é Julia. Considerando outros livros de enredos parecidos, ela poderia ser uma cientista que trabalha para o governo dos Estados Unidos, ela poderia ser uma fora-da-lei que tem alguma perícia única que será capaz de salvar nosso planeta. Mas em A idade dos milagres, Julia é apenas uma garota de 11 anos, que em uma manhã de um final de semana fica sabendo com seus familiares através da notícia no plantão do jornal que o planeta Terra está rodando mais lentamente, e que ninguém ainda tem respostas sobre o que motivou essa mudança, como fazê-la parar ou se ela vai parar.

Julia é também a narradora da história. Mais velha, ela escreve suas memórias sobre o período em que o planeta começou a sofrer a desaceleração, mostrando através do seu microcosmo (uma casa no subúrbio na Califórnia) o que essa mudança representará para a humanidade, e as dificuldades enfrentadas por todos para se adaptar a dias que começam a ficar cada vez mais longos. E toda a graça de A idade dos milagres é que Karen Thompson Walker não se apressa nessa apresentação para dar lugar a alguma aventura ou evento que vá tirar o foco da desaceleração e, posteriormente, dos sentimentos da personagem-narradora. Julia é uma garota comum, de vida comum, que também passa por uma transformação – mais lenta e invisível do que a que a Terra vem sofrendo, mas ainda assim uma transformação: o salto da infância para a adolescência.

Tenho certeza que o paralelo foi traçado em inúmeros textos, até porque é bastante óbvio. E realmente me encantou a delicadeza como a autora tratou do assunto – como quando Julia compra o primeiro soutien que fica grande demais, ou da agonia da personagem por ser deixada de lado no dia do próprio aniversário. Há outros dramas envolvendo a vida da personagem que chegam quase como um soco no estômago, tornando tudo o que Julia conta ainda mais triste. E se você compra a ideia da desaceleração, acredite, melancolia é o tom principal da obra, não tem como ler e não ficar triste.

E voltando para a questão de como trabalha a ideia que apresenta, acho que o que mais chama a atenção é a falta de um antagonista. A humanidade não tem com quem lutar contra, ela tem apenas que se adaptar. Como distopia, esse me parece um elemento bem inovador, já que via de regra distopias acabam funcionando como crítica política e, portanto, o poder no momento da narrativa representa o antagonismo. Mas não aqui. Em A idade dos milagres, a sociedade se divide entre os que continuam seguindo o horário do relógio (e assim ter que conviver com a ideia de “noites brancas”) e os que seguem o horário do sol (tentando se adaptar a dias e noites cada vez mais longos).

Nas memórias de Julia uma nova realidade vai se construindo, e com imagens poderosas a autora consegue criar uma atmosfera que aterroriza justamente por ser tão próxima da nossa realidade. São pequenos detalhes como a morte das aves, as gramas sintéticas e depois as tempestades solares que vão delineando o novo visual de uma Terra que sofre com a desaceleração. Há algo que chega a ser até claustrofóbico, se pensar no momento em que a radiação é tão alta que ninguém mais pode sair de casa nos dias de sol. Ou as breves informações sobre os problemas com eletricidade, com os meios de comunicação e a alimentação. É nisso que eu digo que o livro me conquistou: ele funciona quase como um museu de um período, e nós, leitores, somos convidados a visitá-lo, observando cada pequeno detalhe dessa sociedade. Julia é quem nos conduz, falando de um tempo que ela conheceu e que não mais existe. O que nos leva até o fim do livro não é a curiosidade de saber como os seres humanos escaparam disso, mas saber até que ponto resistiram.

É por conta disso que eu acho que vale um aviso para quem gosta de narrativas mais “agitadas”, digamos assim. Para mim, A idade dos milagres foi uma excelente leitura do jeito que é, porque fugiu de fórmulas que eu já considerava batidas, porque realmente provocou uma série de emoções em mim e mexeu com minha imaginação (foi algo fantástico imaginar a Terra como descrita por Julia e acho que filme nenhum conseguirá fazer justiça ao que como leitores poderemos imaginar). Mas há leitores que poderão confundir a falta de uma aventura ou um antagonista óbvios com falta de enredo e então achar o livro chato o que, a essa altura do meu post, você já deve ter percebido que não é.

E não é porque um livro que te chama para refletir, que faz com que você treine sua empatia e tente imaginar como é que agiria no lugar daquelas personagens não tem como ser chato. Também porque observar a mudança progressiva (da Terra e de Julia), faz com que tudo aquilo pareça estranhamente familiar. E até por isso, tão perturbador.

Em tempo: fiquei sabendo só agora que a capa do livro brilha no escuro. Eu li no kindle, então obviamente não tinha como eu perceber, mas se eu tivesse lido em algum outro lugar sobre a capa, provavelmente meu fetiche teria falado mais alto e eu teria comprado o livro de papel. Fica a dica aí então para quem gosta dessas firulas como eu. Outra recomendação é o post da Nina sobre o livro, que ficou bem legal (tem até booktrailer), para ler, basta clicar aqui.

6 comentários em “A idade dos milagres (Karen Thompson Walker)”

    1. Bem gostosa de acompanhar. Como e a Julia no futuro falando sobre seu passado como criança, ela tem aquele tom de “pessoa contando um causo”, sabe? Interrompe nuns momentos para dar aquele suspense, tem um tom de nostalgia que torna tudo bem “agridoce” (prefiro a palavra bittersweet hehe).

  1. Bial, eu to no post da Anica, beijo para minha mãe, para Xuxa e para a Sacha!
    Rs, brincadeiras à parte, fico feliz que você tenha gostado do livro – e principalmente capturado a essência dele. Muitas pessoas não se acostumam a esse tipo de linguagem que, de fato, exercita a imaginação, nos remete a tristeza e trata o leitor com aquele aviso de “ficção científica diferente de tudo que você já viu”. É bem por aí.
    Que ninguém leia esse comentário, a não ser você, mas eu realmente chorei quando a Julia tratou muito brevemente das amizades desfeitas, com uma constatação do tipo: os servidores (da internet) foram desligados e, como se sabe, nunca mais voltaram a funcionar. E o fatídico “nunca mais vi Seth Moreno”. Nesse final de parágrafo, soco no estômago, desabei.
    É a melhor distopia que já li, exatamente por trazer uma perspectiva diferente da “política”, praticada em Orwell e Huxley, por exemplo.
    Está entre os meus livros prediletos.
    Abraços.

    1. A relação dela com o Seth é tão, tão doce e ao mesmo tempo tão triste que não tem como não sentir mesmo. Sabe, quando vi a descrição do Seth no começo pensei “Poutz, mais uma personagem Edward-style”, mas Seth não tem nada a ver com isso. Doeu para mim o afastamento de Hanna também. Todo mundo já teve um dia uma melhor-amiga-para-sempre que deixou de ser amiga do nada, né?

      Atençããão, tem SPOOOOILER a seguir.

      Mas o que realmente mexeu comigo foi o caso do pai dela. Aquilo foi completamente inesperado, considerando o modo como ela o descrevia desde o começo. Esperava muito mais um surto da mãe dela (que mesmo doente, no final das contas sempre se manteve firme), do que dele. Aquela cena com as caixas, quando Seth e Julia saem no sol, caramba, que agonia >

  2. Li esse livro em 2012 e adorei! Penso nele até hoje. Pena que a parte que brilha no escuro da capa descascou tudo…

    Perguntei pra Cia. das Letras se eles iriam publicar The Dreamers e eles me responderam que Os Sonhadores sai ainda nesse primeiro semestre!

    P.S.: não tenho twitter pra comentar por lá :/

    1. ahhhh que massa que vai sair por aqui :))) uma coisa que não entendi é pq saiu pela paralela (pelo menos no site da companhia aparece como paralela), acho super a cara da seguinte (mas, detalhes hehehe).

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