Never let me go (Kazuo Ishiguro)

Aqui eu vou ter que pedir que quem não leu o livro confie em mim e vá ler antes de continuar lendo esse post. Porque ao contrário do que aconteceu com Pequena Abelha, no caso de Never Let Me Go de Kazuo Ishiguro (publicado no Brasil pela Companhia das Letras como Não me abandone jamais) quanto menos você souber sobre o livro melhor. MESMO. Parte do que me fez gostar tanto do livro foi poder me surpreender com a história, mas infelizmente para comentá-lo terei que expor o enredo. Então vá atrás de Never Let Me Go (não vale roubar e assistir ao filme, heim!) e depois volte aqui.

Então que era tanta gente lendo aqui e acolá, comentando sobre o filme e tudo o mais que resolvi conhecer a obra de Ishiguro. Como sempre faço antes de comprar qualquer livro, dei uma olhada em sinopses para saber do que se tratava. Todas que li falavam a mesma coisa: três amigos que cresceram em um internato quando adultos precisam lidar com a realidade que terão que encarar. A narrativa é dividida em três momentos, sendo o primeiro o que descreve a infância desses três amigos: Kathy (a narradora), Tommy e Ruth.

E tudo vai bem e você pensa que será uma daquelas histórias bonitinhas como o delicioso Conta Comigo que vira e mexe passava na Sessão da Tarde. Uma história sobre o valor da amizade, do amor e principalmente da dificuldade que é crescer, se tornar adulto. E não é que o livro não seja sobre isso também. Mas chega um dado momento ainda nessa primeira parte que você descobre, do nada, com uma simples frase que bem, o que você tem em mãos é ficção científica.

Quer dizer, não é “do nada”. O autor coloca pistas sutis para o que virá a seguir, mas em um primeiro momento o que temos é Kathy descrevendo sua infância no internato de Hailsham. Logo o leitor começa a indagar como é que aquelas crianças nunca deixavam o internato, ou ainda, como é que nunca mencionavam os pais ou qualquer outro parente. Isso soava estranho. Mas também a profissão de Kathy não fazia sentido inicialmente, uma “cuidadora” (carer no original, não sei como ficou na tradução), que tomava conta dos “doadores” (donors no original).

Confesso que cheguei a consultar o dicionário para ver se não havia algum outro significado para essas palavras que eu então desconhecia. Inicialmente pensava nos doadores como doentes terminais, sofrendo de algum mal como o câncer. Mas continuava não fazendo sentido. É então que em um momento uma guardiã revela para os pupilos (e os leitores): eles foram criados para doarem seus órgãos. Aos poucos ficamos sabendo mais sobre isso, que são na realide clones da escória da sociedade, que estão sendo educados para no futuro serem nada além disso, doadores ou cuidadores.

É simplesmente assombroso como para Kathy mesmo essa verdade não chega a afetá-la, pelo menos não do modo que faz com o leitor. É como ela revela em dado momento: no internato sempre prepararam os alunos para isso, mas tomando o cuidado de contar algo sempre no momento em que eles ainda não tinham maturidade para lidar com a informação. Mas quando o fato de que eles são clones feitos para doarem órgãos é revelado, a leitura do livro muda completamente. É impossível ficar sem questionar o horror da situação daquelas crianças, que precisam fazer arte e poesia para provarem que tem uma alma.

E é realmente espantosa a forma como Ishiguro desenvolve suas personagens e a narrativa, que é de uma delicadeza ímpar, mas ao mesmo tão pesada e tão triste. O desfecho é desolador, mas ao mesmo tempo em que você descobre com Kathy e Tommy que não há esperanças para o futuro deles, ainda assim você se prende à história desejando que isso não seja verdade. O que o autor faz é simplesmente cativar o leitor de tal modo que esse não consiga questionar se clones seriam realmente humanos. Eles são.

Uma história linda, poética, cheia de pequenos significados nas entrelinhas. Fico feliz que tenha lido sem saber nada sobre Never Let Me Go e tenha além do prazer da leitura de um ótimo livro, também a oportunidade de me surpreender com a narrativa no momento em que fica evidente o que ela realmente é.

3 comentários em “Never let me go (Kazuo Ishiguro)”

  1. Não em abandone jamais me rendeu 2 seções de terapia. SÉRIO! É assustador. Todos estão mortos a priori e aceitam isso com uma resignação cortante. Há cenas ainda impregnadas na minha memória: as revistas pornográficas escondidas, o barco, a sacola na cerca e o pátio Hailsham.

    Ainda não assesti o filme. Pelo que li, dizem que é uma versão mais açucarada. E eu sinto por ter começado a ler o livro já sabendo que eles eram clones. Perdi essa surpresa.

    E no entanto, isso não estragou meu entusiasmo. Ainda não li outro Ishiguro, mas esse, valeu por semanas de pensamentos tortos.

    1. Você diz que eles “estão mortos a priori e aceitam isso com uma resignação cortante’.
      Cara… Isso não é exatamente a situação de cada pessoa na Terra neste exato momento? Se você vive você vai morrer. Simples assim.

      Você pode falar que eles podiam fugir do sistema, sei lá, se infiltrar no meio dos seres humanos naturais. Mas cara é muito mais complicado que isso. Pensa só: você largaria sua vida atual pra fugir do sistema regente? Quero dizer… Esqueça o consumismo. Não tem “tantos” seres humanos que vivem da terra e mais nada? Foge pro mato e começa a plantar o que você come. Você pensa “Impossivel. Não tem como.”.
      Não tem como porque?! Eu respondo: É só porque é com isso que você esta acustumado. Comodismo faz parte da natureza humana. Você tenta fazer o melhor com o que é lhe dado.
      Para os clones de Never Let Me Go, o que é dado é uma vida que invariavelmente acaba em morte a merce da nessecidade dos humanos naturais. Eles não conhecem mais nada. Simplesmente não tem discução, não tem saida.
      Você pode sinceramente diser que sua vida é diferente?

      Eu não nego que o livro é forte pra caralho. Eu fiquei uma noite sem dormir por causa dele. Isso porque eu li ele de inicio ao fim, só parando para comer …

      Mas eu achei ele pertubador por que é um soco na cara. Eu sou Katy, eu sou Ruth, eu sou Tommy, eu sou eu sou o carer cansado, eu sou a madame, eu sou o(s) guardião(ões). Eu me identifico com os defeitos da maioria das personagens – seja em maior ou menor grau

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