O Dom do Crime (Marco Lucchesi)

Poucas obras nacionais mexem tanto com o imaginário popular quanto Dom Casmurro, de Machado de Assis. Algumas vezes mesmo aqueles que terminaram o ensino médio com um certo trauma da obra, ainda assim embarcam em discussões sobre o romance, que invariavelmente acabam na velha pergunta “Capitu traiu ou não traiu?”. A crítica literária já se debruçou sobre essa questão, mas a verdade é que nunca há de se saber. E por não existir resposta que talvez tantos escritores busquem romancear sua visão do que aconteceu.

É o caso de Marco Lucchesi, com seu romance de estreia, O Dom do Crime. Tomando como ponto de partida um crime passional que ocorrera no Rio de Janeiro nos tempos de Machado de Assis (mais precisamente em 1866), Lucchesi acaba por nos mostrar através do romance que Capitu é apenas uma vítima em uma sociedade machista que ainda absolvia criminosos por crimes de “limpeza de honra”, tomando como referência a ideia de que Machado inspirou-se no crime para criar sua famosa personagem.É interessante que Lucchesi tenha escolhido o romance para mostrar esse ponto de vista. Porque o que temos em mão é uma obra de ficção, que mescla fatos reais com elementos de ficção. Apresenta-se assim um labirinto para o leitor, uma espécie de jogo, no qual a tarefa é separar o que é a linha da realidade e o que é da ficção.

Para tal, o autor traz uma personagem-narradora, sem nome. Do mesmo modo que Bentinho, ele deve escrever suas memórias (embora aqui, por indicação do médico). Ele decide que a vida alheia é mais interessante, então foca suas memórias no crime ocorrido em 1866, no qual o médico José Mariano da Silva louco de ciúmes, mata a esposa Helena Augusta, que acredita estar o traindo.

O homicídio de fato ocorreu, e eram figuras importantes da sociedade carioca daqueles tempos. Dr. José Mariano da Silva chegou até mesmo a ser médico do pai do poeta Olavo Bilac. Por causa disso, o crime ganhou bastante destaque e foi assunto por muito tempo – e é a partir disso e do fato de que Machado na época trabalhava no Diário do Rio de Janeiro e provavelmente teve um contato direto com a notícia que Lucchesi acredita ser possível afirmar que o crime serviu de inspiração para Machado de Assis escrever Dom Casmurro.

Uma vez que o narrador e sua motivação nos são apresentados, passamos então a saber dos detalhes do crime, seu julgamento e o que eles tem em comum com a obra de Machado de Assis. O interessante é que ao longo do que em alguns momentos soa quase a um ensaio teórico, temos diversas citações e recordações de Machado. Assim, O Dom do Crime surge mais do que tudo como uma homenagem ao escritor.

Provavelmente a obra tenha um sabor diferente para aqueles que acabaram de ler Dom Casmurro, e estão com alguns detalhes do romance mais frescos na memória. Isso porque Lucchesi faz algumas considerações bastante interessantes sobre o texto, que conduzem o leitor a imagem de que Bentinho era louco de ciúmes como o Dr. da Silva e, mais do que isso, fruto da mesma sociedade que transformava uma mulher em adúltera num piscar de olhos.

O texto é ágil, dividido em capítulos e com um punhado de metalinguagem. Bastante agradável e indispensável para os fãs de Machado, mas especialmente para aqueles que gostam de ver em um romance um pouco do contexto histórico da época que ele retrata, e para quem gosta do desafio de separar a realidade da ficção.

Como curiosidade, deixo o link para o livro O Juri da Corte 1866: O crime do Dr. José Mariano da Silva, que descreve os eventos que Lucchesi toma como base para o romance. Para saber mais, basta clicar aqui.

2 comentários em “O Dom do Crime (Marco Lucchesi)”

  1. Não estou de forma alguma criticando o conteúdo do seu Blog ─ que entendo ser um trabalho do que se diz da obra Dom Casmurro. Entretanto, estou sim (usando este seu Blog como veículo, e me perdoe por isto) dizendo da minha grande tristeza em contatar que a maioria dos leitores de Dom Casmurro tem reduzido a obra à indevida obliqüidade e ao falso adultério de Capitu; também outras coisas do contemporâneo que decididamente não cabe na obra; diferentemente, esses dois pontos (da primeira ponderação) são elementos de intencional contradição para pegar e brincar com acadêmicos e muitos leigos como eu, que as entendi plenamente, e em nenhum momento caí nessas e em outras peraltices da genialidade de Machado, e pelo contrário, as reproduzo no trabalho citado. Senão, você e seus leitores visitem os meus Blogs sobre o assunto: REAL EVOLUÇÃO DA FEITURA DA OBRA DOM CASMURRO ─ http://www.verdadedomcasmurro.blogspot.com e constatem o que tenho ponderado neste pequeno comentário. Também o Blog SÓCRATES VERSUS PLATÃO VERSUS MACHADO ─ http://www.socratesplataomachado.blogspot.com .
    Atenciosamente JORGE VIDAL

    1. Não é um trabalho do que se diz da obra Dom Casmurro. É uma resenha de um romance baseado em detalhes da vida de Machado e a obra Dom Casmurro em si. Dava para pelo menos ler o texto antes de vir fazer spam aqui, né? ¬¬’

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