Memórias do Subsolo (Fiódor Dostoiévski)

Sempre lembro de um momento em O Tempo e o Vento de Érico Verissimo no qual uma personagem dizia que O Capital de Marx era o livro mais citado e menos lido de todos os tempos. Se fôssemos esticar o raciocínio para um autor, tenho certeza que o campeão seria o russo Fiódor Dostoiévski. Por alguma razão que me escapa ele ganhou fama de “leitura difícil”, e por consequência quem o lê seria automaticamente uma pessoa inteligente. Portanto o autor consta em diversas listas de livros favoritos, muitas vezes mais como uma espécie de troféu “ah, eu venci essa leitura!” do que como uma indicação de prazer. O nome na lista não significa necessariamente que o autor foi lido, pelo menos não no sentido de imersão na obra.

Bobagem sem tamanho, tanto o medo da leitura (classificando um autor como difícil sem conhecê-lo) assim como usar leituras como troféu. De que adianta dizer que leu Dostoiévski se nada foi absorvido? E claro, isso vale para qualquer autor. Então, antes de descermos ao subsolo, vamos combinar isso: o importante é ler o que você gosta. Leia Dostoiévski sim, mas porque você deseja, e não porque vai parecer mais inteligente para outras pessoas.Até porque tomando Memórias do Subsolo, o estilo de narrativa do autor russo é até bastante simples. A começar, trata-se de uma novela, um texto mais curto que um romance (e portanto com menos espaço para complexidades). Mas o livro está muito bem estruturado, dividido em duas partes e montado em três momentos básicos com os quais é impossível o leitor se perder: o discurso de abertura, o encontro com os amigos e Liza. Talvez o momento inicial, com a verborragia do homem do subsolo precise de um pouco mais de fôlego do leitor (inclusive a sensação que tenho é que essa parte deveria ser lida de uma vez só, sem pausas), mas quando partimos para as lembranças do narrador do encontro com os amigos e de Liza, temos um discurso bem normal, fácil de acompanhar.

Eu insisto nesse ponto porque eu não acredito que a dificuldade em Dostoiévski more no modo como ele escreve, mas do que ele fala. Tomando o protagonista-narrador, o homem do subsolo é cheio de mesquinhez, pequenezas. Sentimentos e pensamentos que já vivenciamos em algum momento, porque somos humanos, imperfeitos, anti-heróis ambulantes. Mas dói reconhecer semelhanças em uma personagem como o narrador. Queremos nos ver em atos brilhantes, no melhor de uma personagem, e não no que ela tem de mais pequeno e perverso.

O comportamento do narrador no encontro com os amigos é onde isso fica mais evidente, especialmente em relação a Zvierkóv. Ele crê-se superior ao conhecido, mais inteligente. Mas ao mesmo tempo falha em um aspecto que esse amigo “inferior” parece se dar muito bem, viver em sociedade. Com Liza, quando essa o visita em casa, novamente temos o choque do superior/inferior – com o narrador humilhando a moça porque ela sente pena dele.

O “subsolo” constantemente citado pelo narrador fez com que eu lembrasse de Gaston Bachelard em Poética do Espaço: é uma representação da alma. O homem que se fechou tanto dentro de si que desconhece a maneira de agir (e mesmo a necessidade de fazê-lo) em sociedade. É um mergulho, rápido mas denso, ao que temos de negro dentro de nós mesmos.

Por isso insisto novamente no convite inicial: deixe de lado a ideia da leitura a ser vencida e usada como troféu. Leia Memórias do Subsolo pelo prazer de reconhecer como um autor conseguiu fazer essa jornada até o fundo do ser humano, sem medo de retratá-lo com suas imperfeições, pensamentos e sentimentos mais obscuros.

Em tempo: não sei russo, portanto não posso avaliar a tradução desta edição da Editora 34 sob esse aspecto. Mas o texto de Boris Schnaiderman flui muito bem, sem momentos de estranheza, e vem repleto de notas bastante elucidativas sobre o contexto social.  A tradução foi originalmente publicada pela José Olympio na década de 60, sendo relançada pela Editora 34 no ano 2000. Um resgate importante de um texto fundamental na biografia de Dostoiévski.

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