Desgracida (Dalton Trevisan)

Lembro de uma certa discussão na qual um rapaz de São Paulo questionava “Por que vocês curitibanos se acham donos de Dalton Trevisan?”. Na época até pensei em responder qualquer coisa sobre familiaridade, mas acho que hoje em dia eu entendo a revolta do leitor. Dalton transforma Curitiba no mundo (como Rosa fazia com o sertão? Não sei.), porque embora em certos momentos o curitibano tenha a nítida sensação de estar andando com as personagens por ruas que conhece tão bem, se você tira esse reconhecimento do espaço, o que fica é o humano – retratado às vezes com uma simplicidade que não tem como não visualizar o mini-conto como um episódio da vida do leitor, ou de um conhecido do leitor.

Desgracida, coletânea de contos lançada em julho pela Editora Record, deixa isso ainda mais evidente. Sim, você ainda pode sair em busca de Curitiba Perdida, mas repare como os contos poderiam estar em qualquer lugar. E são deliciosos, talvez até pela concisão: rápidos e rasteiros, você lê o livro em uma hora e fica querendo mais. Até porque está tudo ali, mais uma vez – a acidez, o humor, a delicadeza. Plural de pequenos eventos, um melhor que o outro.

Ranzinza também, como pode ser visto em Emiliano Redivivo (clara referência ao artigo publicado no periódico Joaquim sobre o poeta paranaense Emiliano Perneta), onde Dalton aponta o olhar crítico novamente para Helena Kolody ao concluir com as linhas:

(…) A nossa pobre santa Maria Bueno do versinho piegas.

Só que, ao contrário da outra, não faz milagre.

Também chama a atenção para a simplificação exagerada na comunicação atual, em A língua dos caras, quando comenta:

1º – Ninguém mais tem nome. Somos todos – cara, ei, cara. Até entre as moças.

2º – Todos os adjetivos se resumem a um só – legal.

3º – Não se conjuga verbo. É só – a gente diz, a gente isso, a gente aquilo. (…)

Ótimos também os contos com criança, até porque a maioria são de uma doçura que só quem já conviveu com as “pessoinhas” sabe como elas realmente são capazes de dizer verdades de um jeito que cala o adulto e ao mesmo tempo o encanta. A leitura flui bem, e quando você percebe já chegou na segunda metade do livro, Mal Traçadas Linhas, que na minha opinião foi o que mais atiçou minha curiosidade sobre Desgracida: nessa parte temos cartas de Dalton Trevisan, enviadas para pessoas como Otto Lara Resende e Rubem Braga.

Para quem admira a obra de um escritor, ter a chance de ler suas opiniões sem estarem cobertas pelo véu da ficção é sempre um grande momento. E as cartas de Dalton obviamente são curiosas e interessantes, porque tratam dos mais variados assuntos. O problema na minha opinião ficou um pouco na questão da organização: não são todas que apresentam datas, e elas não são apresentadas em ordem cronológica. Acho que talvez a intenção aí seja a de deixar a carta para Otto Lara Resende que começa com “Falemos mal do Grande Sertão” mais para o fim.

Opinião pessoal sobre essa carta é que ele estava é fazendo piada, até porque perto da conclusão pergunta: “Gostou do exercício frívolo de leitura?”. Também fica evidente uma admiração grande por Machado (o que não surpreende vendo que alguns temas Machadianos são recorrentes em sua obra). Enfim, vale a pena ver um pouco do autor, ainda mais tratando-se de uma figura tão fechada como Dalton é.

Livro muito bom, daqueles para ter em casa e poder reler de quando em quando. Para quem está curioso, deixo como sugestão a leitura da Carta-resenha escrita por Caetano W. Galindo sobre Desgracida, publicada em julho desse ano na Gazeta do Povo. Acho que dá para pegar uma ideia do que esperar da obra, especialmente da parte das cartas.

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