Rock n’ Roll e outras peças (Tom Stoppard)

rockO nome Tom Stoppard pode não soar muito familiar para você, mas vamos tentar estes aqui: Que tal Brazil, o filme? Ainda nas produções da década de 80, quem sabe Império do Sol? Ou ainda o papa-Oscar Shakespeare Apaixonado? Pois saiba que os roteiros desses filmes tem as mãos de Stoppard, seja em autoria, co-autoria ou adaptação. Não acha que são boas referências ainda? Que tal irmos para o campo em que ele realmente atua, o teatro? Ganhador de vários prêmios Tony, além de ser nada mais, nada menos do que “Sir” Tom Stoppard. Já deu para ter uma ideia da importância da figura, não?

É por isso que a publicação de Rock n’ Roll e outras peças pela coleção listrada da Companhia das Letras vem em tão boa hora. Eu já havia comentado em outro momento como fazia falta uma tradução de Rosencrantz and Guildenstern are Dead aqui no Brasil, imagine então minha alegria ao saber que não seria apenas essa peça, mas uma coletânea dos trabalhos de Stoppard que chegariam em português, traduzidas por Caetano W. Galindo. É livro para fazer os olhos dos amantes de teatro brilharem, e mais importante, é daqueles para apresentar Stoppard para um público que aprecia boa literatura.

A coletânea não está organizada por ordem cronológica, mas a forma como foi montada aproximou temas recorrentes do teatro de Stoppard, quase como se fosse uma galeria de quadros dos mais variados estilos na qual temos a oportunidade de ver um pouco de tudo que ele já fez. Stoppard já escreveu mais de 30 peças, a coletânea traz sete (oito se separarmos O Macbeth de Cahoot de O Hamlet de Dogg, embora o dramaturgo afirme que uma complementa a outra). Algumas delas vem com um texto introdutório de Tom Stoppard, explicando algumas questões sobre a criação do texto, característica de personagem, contexto, etc., o que é ótimo para uma leitura mais fluida dos textos.

O livro abre com Arcádia (encenada pela primeira vez em 1993) que lembra em muito o teatro de Oscar Wilde com peças como A importância de ser prudente. O humor e a inteligência do texto saltam aos olhos, especialmente na fala do tutor Septimus, que é uma personagem adorável. O texto intercala momentos no passado (com Septimus) e no presente (com pessoas estudando o que seriam “pistas” deixadas em um livro de Septimus), apresentando até uma conexão com Lord Byron. Se você tem alguma dúvida ao abrir o livro se gostará de Stoppard, já nas primeiras páginas dá de cara com a seguinte resposta de Septimus para a pupila que diz que é impossível “desmisturar” o arroz doce e a geleia:

Nunca, de fato, pois o tempo teria de correr ao contrário; e como ele não corre, temos que ir abrindo nosso caminho a colheradas, misturando tudo enquanto isso, desordem vinda da desordem gerando desordem até que tudo esteja rosa, estável e imutável, e tenhamos desistido para sempre. A isso se chama livre-arbítrio ou autodeterminação.

É realmente um começo delicioso. Seguimos então para De verdade, encenada pela primeira vez em 1982, e um pouco mais amarga (embora o humor esteja sempre presente, uma característica marcante do autor). Para narrar a vida de dois casais envolvidos com teatro, Stoppard faz um jogo genial entre a Cena 1 e a Cena 2: na primeira vemos a discussão entre um casal, Max e Charlotte. Na seguinte, vemos Charlotte na casa de Henry, e pensamos que ela se separou de Max por conta da discussão. Aos poucos descobrimos que na realidade Henry é um dramaturgo que colocou a vida pessoal no roteiro e que na realidade a primeira cena era Max e Charlotte representando um momento da vida de Henry e Charlotte.

Além desse efeito, frases muito bem sacadas fazem dessa peça algo fora do comum se for pensar que se baseia principalmente em relações de casais. Como por exemplo quando Max, interpretando Henry (o que tem as melhores falas, no final das contas) diz para uma Charlotte enfurecida: Pode me dar um tapa se quiser. Eu não devolvo. Odeio clichês. É uma das coisas que me mantiveram fiel.

Após essa peça temos O verdadeiros Inspetor Cão, encenada pela primeira vez em 1962. Se julgar a data de estreia e o que Stoppard faz com o roteiro, dá para ter uma ideia de quão inovador o dramaturgo sempre foi. Começamos com uma cena na qual a plateia vê uma plateia, e a partir daí uma encenação começa em uma espécie de metalinguagem mesclando uma trama ao estilo Agatha Christie, mas com (muitas) doses de nonsense.

Na peça seguinte, Pastiches (encenada pela primeira vez em 1974), outro recurso interessante. A memória de Henry Carr que recria os eventos, e portanto tem falhas, como uma representação perfeita do que é nosso processo de lembrança. A peça apresenta personagens reais como James Joyce e Lênin, e, como Stoppard conta na introdução, o próprio Carr (que processou Joyce no passado). Aliás, a relação de Carr com Joyce rende alguns momentos muito engraçados, como na fala de Carr:

Eu sonhei com ele, sonhei que estava com ele no banco das testemunhas, um interrogatório de mestre, caso praticamente ganho, admitiu tudo, a coisa toda, as calças, tudo, e eu joguei na cara dele “E o que você fez na Grande Guerra?” “Eu escrevi Ulisses“, ele disse. “O que é que você fez?” Cara de pau.

Rock n’ Roll, destaque da coletânea e também um dos trabalhos mais recentes presentes nela (encenada pela primeira vez em 2006) tem dois elementos mais importantes no texto. O primeiro, como fica óbvio pelo título da peça, é a música. O segundo fica por conta das raízes tchecas do escritor, que nasceu Tomáš Straüssler e deixou o país aos dois anos de idade, fugindo da ocupação nazista. A personagem Jan, como Stoppard aponta no texto introdutório, tem muito do que seria ele caso tivesse retornado para seu país. A peça foca principalmente na Primavera de Praga (e por conta desse evento apresenta ecos de A insustentável leveza do ser, de Milan Kundera) e na Revolução de Veludo.

Depois é a vez de Rosencrantz e Guildenstern morerram, que continua sendo minha peça favorita de Stoppard. Ela foi encenada pela primeira vez em 1966 e também ganhou uma versão para o cinema com Gary Oldman e Tim Roth nos papeis principais. Sobre a peça já falei em outro momento aqui no blog, então deixo como sugestão de leitura para quem quiser saber um pouco mais desse texto que traz, como as outras peças do dramaturgo, muito humor e um texto brilhante.

Fechando a coletânea temos duas peças que, como já dito antes, se complementam. São O Hamlet de Doog e O Macbeth de Cahoot. A ideia principal que move o texto é que são atribuídos sentidos diferentes para palavras que já conhecemos, com frases como “Merda, otário” significando “Até mais, senhor”. De toda a coletânea acho que foi a que mais senti falta de ter a oportunidade de ver encenada – a sensação que deve causar essa variação de significados parece ser algo realmente fora do comum.

Assim como comentei anteriormente, é um livro que chega para apresentar Tom Stoppard para o público brasileiro. Representa bem os variados lugares por onde o dramaturgo já caminhou nessa tão longa carreira, e são todos ótimos textos. Para quem já está familiarizado com textos de teatro, reparem no cuidado de Stoppard nas indicações de características de personagem, cenário, trilha sonora e afins. Impecável.

(Post originalmente publicado no Meia Palavra em 20/11/2011)

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